Um toque deflagra o olor

Os dedos obstinados (diria obsessivos)
Doçura diversa a de segurar o cigarro
indicar qual a estrela ou
virar a página
de um livro

A receita ritual requer
pétalas maceradas ao ponto
de liquefazerem-se em
seiva sanguínea sumo
Aromas coagulam como nuvens

Deflagras o olor

Relógios não compreendem
o ritmo dos delírios que movem
a delicada estrutura óssea
das tuas mãos

Deflagras o olor
Possível razão para o fracasso:

não calou dentro de si 
as outras vozes

soassem como sussurro 
ilegível ao espírito
saberiam diferente sorte

Senti entre as mãos
a suave respiração
de um pássaro
declinando
até o
si
lên
ci
o

Inútil arremessar
pedras contra a vidraça
puni-la pela transparência

Meu bem,
escreva em minhas costas
a palavra: 

asas

e se despeça com um beijo.
Lygia Pape, Língua Apunhalada, 1968.
Silêncio espesso,

houve uma palavra
pronta, iminente
na ponta da língua
O suicida incerto
desistiu do salto

Silêncio espesso,

diariamente penso
na palavra não dita 
Não esqueço, não esqueço
que estive em pé
na estação rodoviária
com a palavra:

me despeço
e prossigo
sem dizê-a

Silêncio espesso,

a palavra 
não dita
me habita
Carregá-la
é saber outro corpo
dentro de si
seja um sexo
seja uma saudade

Silêncio espesso,

conheço a textura
da palavra não dita
a matéria pétrea

A natureza humana
me faz esculpir
um ídolo
com a palavra
não dita

O medito
em espesso
e monástico
silêncio
O dedo inscreve
a uma profundidade
suficiente para que seja
nítido o círculo
em torno dos pés
de outro corpo

(a mão divinamente 
inspirada como Anchieta
escrevendo poemas na areia)

O círculo: cicatriz na praia

Sobre os pés contidos pelo círculo
há olhos que observam
há um crânio e dentro pensamentos
que buscam compreender-se parte 

Um pé trans
passa a linha 
depois outro 
então ambos
já não estão circun
scritos

Rastros afastam-se do círculo vazio
O círculo não é imaginário
O círculo será apagado pela maré cheia

     Hoje dia 26/12/14 fui surpreendido pelo artigo do Prof° Dr° João Adalberto Campato Jr. intitulado "Um rápido olhar sobre a poesia brasileira de hoje" publicado no site de notícias Mais Tupã e que anteriormente havia sido publicado na Revista Triplov. No artigo sou generosamente citado, ao lado de excelentes nomes, como um dos poetas dos anos 2000 à serem lidos: 

"Tendo em mira que tal artigo tem finalidade informativa antes do que crítica, elencaremos alguns poetas da geração dos anos 2000, cuja leitura sugiro para os adeptos da boa poesia: Alexandre Bonafim (1976), Ana Rüsche (1979), Cléberton Santos (1979), Elisa Andrade Buzzo (1981), Henrique Marques Samyn (1980), Mônica Montone (1978), Omar Salomão (1983), Tarso de Melo (1976),  Luiz Felipe Leprovost (1979), Leila Guenter e Gustavo Petter (1984), este último e talvez menos conhecido radicado em Araçatuba, no interior paulista."



Vale acessar o link para conferir a reflexão sobre a poesia contemporânea feita pelo Prof° Dr° Campato Jr. 

Deixo ao mestre meus sinceros agradecimentos pela leitura e atenção à minha poesia.


Engrenagens
sopram contra
a face metáforas
para a asfixia

A memória fixa
outros olores
símbolos do 
já vivido

O cigarro que recende
à cravo da Índia
O incenso que se desfaz
junto ao antigo Buda

Lembranças movem-se
semelhante à lógica poética
Permitem fraturar o discurso
com a imagem: vistas de longe
são inodoras as flores
Mas, raramente se usa
a sinestesia no dia-a-dia
prático da língua

Mesmo sabendo infértil
a semeadura de pétalas,
desconstruo a corola
para afastar o sexo
de qualquer analogia com flores

Desejo
a crueza
e o cheiro
da primeira
leitura
que fiz
da tua
nudez

Um homem amanhece pensando em reescrever-se, como o personagem em um manuscrito. Mas, a consequência dolorosa é ter reescrita toda sua órbita, o que parece injusto.

Percebendo a impiedosa beleza do impasse, o poeta decidiu escrever sobre o homem que quisera reescrever-se. Mas, sem aproximar o poema de uma possível fábula moral. 

O poeta contempla o caos que habita o homem.

O homem sente-se no limite. Não há livro na estante ou discos palatáveis para esse instante.

O poeta tenta traduzir em palavras o ritmo do homem.

Ambos, o poeta e o homem, querem um vaso próximo onde apagar as pontas de cigarro. Vaso com um cacto plantado. Desses redondos (uma abóbada, abóbora ou cúpula) ou verticais (como um pau duro, o dedo médio em fuck you) tanto faz.

O homem e o poeta, cada um à sua maneira, vivem a aridez da dúvida.
As janelas acesas
são lanternas japonesas
Pelos apartamentos
movem-se silhuetas
Vê-se o teatro de sombras
vizinhos transam
assistem televisão
ouvem a música
dos próprios pensamentos
debruçados sobre a varanda

Não se percebe
se alguém teve
uma visão mística
recente ou se recende
a cigarro o hálito
se habita na língua
um bilhete suicida
se mantém os olhos
no passado ou sonham
o futuro pois parecem
vagos vistos de longe
sempre no horizonte
ou rumo ao térreo

daqui não consigo
discernir se são incrédulos
ou sentem medo 
talvez nem de perto
talvez sejam sempre
eu mesmo meus 
olhos no espelho


Na memória
o rosto 
sem nome
me
olha

A língua 
lembra
o sabor
do sexo
anônimo

Lembranças são
migalhas de pão
lançadas aos pombos

No chão da praça
pedras negras e brancas
compunham a rosa dos ventos
Barbudos esmolavam
na entrada do metrô

Recordar tudo
cada detalhe
Ser o faquir
que estende o corpo
sobre as memórias










A escola era católica

Fui mordido por um rato de laboratório, desses brancos com os olhos vermelhos. Não me tornei super-herói, talvez por preferir quadrinhos eróticos japoneses.

A escola era católica

Julguei que urinar sobre a pia, mudaria alguma coisa em mim. Ao sair do banheiro continuei o mesmo.

A escola era católica

Reproduzi um girassol amorfo. Não havia profundidade, as margens se dissolviam. Mas no futuro vocabulário de poeta, palavras sinônimo de dissolução e imagens tipo fronteira líquida seriam a essência.

A professora resumiu a biografia de Van Gogh, apresentou outras obras, o autorretrato com a orelha decepada. Intuí que mais palpável do que a metáfora do coração lacerado, um dia enviaria uma parte minha amputada.

Contemplo a inquietude que beira a loucura. Quis, por muito tempo, ser pintor. Ainda hoje a arte decorativa me dá náuseas.
Conformar-se:
adaptar a forma
às margens que
a circunscrevem

Com o mar
há a incerteza
se conformar-se-á
ao cais
à areia
aos olhos

a ressaca ruge
avança a linha de espuma:
sintaxe em êxtase poético

Conformar-se
esculpir-se espelho
dos limites que
o envolvem

750ml de vinho
silenciosos no intestino
da garrafa de vidro
escuro

até cederem à sede báquica

Raízes inconformadas
imaginam-se tentáculos
em um jardim submarino

Os sonhos
incontidos
no crânio

O homem estrangeiro
no próprio chão


A Revista Modo de Usar publicou treze poemas de Leopoldo María Panero traduzidos por mim. Fiz a seleção a partir do tema da blasfêmia. Me sinto feliz por ter participado desse projeto.


http://revistamododeusar.blogspot.de/2014/12/leopoldo-maria-panero-1948-2014.html









Uma sombra na pele da parede
Espectro esgueirando-se
assim abandono 
o almoço de confraternização

Por me reconhecer estrangeiro
Por ser mais fraco que os confrades
Por ter uma fratura exposta
que as crianças contemplam piedosas
Pelo aspecto noturno dos olhos
Por frustrar as expectativas
e também não ter nenhuma
Por compor o freak show
sendo o macaco fumante
que se masturba para o público
Por preferir ficar em casa lendo poesias
Por querer traduzir-me em poemas
tão fodas quanto os de Rafael Cadenas
Fernando Pessoa Leopoldo María Panero
versando a própria derrota

Há ainda outros motivos
pelos quais abandono o almoço
e movo-me a esmo pelas ruas


Drive thru  vazio
Postes acesos
clareiam a
ausência

O vento move
para os cantos
grandes copos
de milk shake
Alhures um cão
devora sobras
de hambúrguer

A memória 
é mais que polaroid
e menos que cicatriz

Poetas salvam
da impermanência
a paisagem
para atear a dúvida:

Qual a mais
lacerante metáfora
para o abandono
que representamos
agora? 




No supermercado 
Eva escolhe a mais bela 
e luzidia maçã.
Idealiza o doce sumo 
misturando-se à saliva.

O sonho insinua-se ao real. 
A palavra explora fronteiras, 
dissolve as margens, 
induz a tramarem-se 
com visceralidade sexual.

Já em casa
o fluxo forte do chuveiro 
silva como serpente 
sobre sua nudez.
Alma antiga
que reabitas 
o altar de ossos
ante vossos pés
declamo salmos insanos
improvisados como jazz

Revela-me o deus
anterior a toda liturgia
o sagrado nu
do adorno inútil

A alma antiga me conta
desde criança carrega a crença
na santidade das borboletas
E digo que li um pouco
sobre zen budismo
durante uma crise espiritual

O coração que não esteve
solitário sobre um píer
vivendo a enseada anoitecida,
não compreenderá a alma
dos lumes que flutuam
em tuas pupilas

O coração que não esteve
à deriva por rumores marinhos
não compreenderá porque reli
Brodsky traduzir o olor de algas
que recende de Veneza
e da infância báltica

O coração nunca ferido
por brancas lâminas
não compreenderá a analogia
entre a Vênus anadiômena
e a musa emersa
de negros mantos
que declamam com violência
sua nudez lunar
Quando vazia
não concebo a taça
metáfora do silêncio
e sim do desejo
de reatar o ciclo
até que o nomeiem
vício
excesso.
Não creio
que o espírito
dos monges
permaneça sereno
por longo tempo:

signo
imóvel
vinho
no bojo
de um jarro

Minha alma,
miserável será a garrafa
que te acolher como metáfora
Não poderia compô-la
corpo imune
à visceralidade dos dedos
serpente em torno
sedenta para entorná-la
no vazio de uma taça
ou direto na boca.


Um amigo
que fora monge
beneditino
disse: em êxtase
Santa Teresa
era imune
às chamas

Vejo suas mãos
tornarem-se pássaros
acesos

Meu amigo
abandonou
o monastério
talvez porque
o fogo da dúvida
já não era indolor

Imagino versos
dignos de Maldoror:
Como um sapato que machuque os pés, 
abandoneis vossa fé. 
Sinta toda lascívia da água e do barro 
ao amparar vossos passos.

Meu amigo os leria sem tesão
porque Deus ainda sussurra
pelas suas sendas
Apenas a rotina ritual
o voto de silêncio
a castidade, o claustro
desabavam como pálpebras
calando o horizonte

Somente o autoflagelo
permitia externar
seu inferno.




                                 


Adorno a adaga
pedras preciosas
delicadas linhas em ouro
sobre o fundo prata
compõem um mosaico

A adaga que adorno

somente a mão predestinada
é digna de empunhá-la

Adorno a adaga

pela qual serei morto
A adaga é fêmea
completa-se transpassada
em meu corpo

Adoro a adaga

como a um ídolo

Por quinze anos os pés acariciaram desertos. Alimentou-se de vermes, saciou-se na mesma fonte que os predadores.

Por quinze anos uma luz impura que induz ao suicídio, dividiu entre noites e dias o desamparo.

Por quinze anos a revelação navegou ilegível pelos leitos noturnos: Odisseu retornando à Ítaca.

Por quinze anos creu ser destinado à mendicância.

Somente livros de poesia, discos de rock e garrafas de vinho ofereciam alívio.

Mas, eis que a estrela fez-se insígnia.
Em um corpo lunar, lábios rubros 
conclamam: siga a sua loucura.
Não tema as mãos permanecerem trêmulas
inverta a ampulheta
e avive o movimento.



    Poema de Rafael Cadenas parte da obra Una Isla, 1958.





  Sob sons selvagens a bailarina dança na noite 
suja.
  Carvão vegetal.
  O hálito verde do seu corpo que gira em um poço azul
banha as mesas.
  Seu sorriso na densa luz dilacera olhos inseguros.
  À porta alguém vela.



    Con sonidos de selva la bailarina danza en la noche
sucia.
    Carbón vegetal.
    El hálito verde de su cuerpo que gira en un pozo  azul
sapica las mesas.
    Su risa en la densa luz rasga ojo inseguros.
    A la puerta alguien vela.

Trad. Gustavo Petter.

Taça que exala
sangue e urina
nomeio teu crime:
novo vinho

Bebida que exalta
aos incrédulos

Somos dignos
do brinde
Anjos caídos
são ainda anjos

Toda palavra
soa imprópria
seus signos absolutos
como a morte
Procuremos no silêncio
a tradução, símbolos
que não semeiem
cadáveres

O poeta e a musa
alçam a santidade
tornando-se 
uma só catedral
de ossos tramados.
Árvore infrutífera
no silencio da rua
existe para que
suas raízes amparem
a garrafa vazia
de saquê

Desoladoramente sóbrio
prossigo com incertezas
sobre a existência



Modorra felina
nos braços da poltrona
Sou o dono assolado
por inquietudes
Ao ler poesia chinesa
quis habitar o tempo
que pulsa próximo
ao da poça de chuva

Mas, soa ilegível
o incêndio de vozes

Que partitura traduziria
o estilhaçar de uma taça
plena de vinho
e lábios inscritos
diante da sede
dionisíaca?

Meu caro 
Leopoldo María Panero,
recebi teus poemas blasfemos
Ao lê-los me tornei
um cão farejando 
o ânus de gesso
dos ídolos vulgares

A dúvida
não lança
ao nada
Anoto tudo,
sistematicamente
preencho as páginas
impuras do espírito:

na busca
por iluminação
a carne
é candelabro


Amorfo,
nenhuma
silhueta
significa
tua essência

Seja
em barro 
mármore
madeira 
gesso
mãos humanas
não afastam-se
do espelho

Amorfo,
a mancha 
de sangue
margens 
que expandem-se
pela superfície
irregular
almejam
uma tradução


Canção para um show de rock

Não temos fé
do outro lado desta vida
espere somente o rock and roll
disse a caveira que há entre minhas mãos
dance, dance o rock and roll
para o rock o tempo e a vida são uma miséria
o álcool e o haxixe não dizem nada da vida
sexo, drogas e rock and roll
o sol não brilha pelo homem,
nem o sexo e as drogas:
a morte é o berço do rock and roll.
Dance até que a morte te chame
e diga suavemente entre
entre do reino do rock and roll.



Canción para una discoteca.

No tenemos fe
al otro lado de esta vida
sólo espera el rock and roll
lo dice la calavera que hay entre mis manos
baila, baila el rock and roll
para el rock el tiempo y la vida son una miseria
el alcohol y el hashis no dicen nada de la vida
sexo, drogas y rock and roll
el sol no brilla por el hombre,
lo mismo que el sexo y las drogas:
la muerte es la cuna del rock and roll.
Baila hasta que la muerte te llame
y diga suavemente entra
entra en el reino del rock and roll



Poema de Leopoldo María Panero, tradução de Gustavo Petter.

Contra España y otros poemas de no amor (1990)


Não permitem a ela permanecer 
com os braços abertos
em forma de cruz

Deve-se cruzá-los à altura do ventre
ou estendê-los ao longo do corpo
Prevenindo assim que os poetas
teçam analogias com a crucificação

Não permitem ao olhar 
permanecer fixo no azul 
Órbitas vítreas simbolizam
com demasiada crueza o silêncio

É doloroso recordar a musa anônima
do poema Greenwich Village Suicide
de Gregory Corso

Uma superdose de antidepressivos
seria o suicídio mais óbvio
e o cadáver transpareceria serenidade
Um ininterrupto ruído paira sobre o público. Assemelha-se ao zumbido de insetos. Penso no som de microfonia. Os olhos da plateia buscam pelo auditório, voo estúpido no espaço vazio, alguma resposta. Enquanto o professor doutor expõem o laudo sobre as vísceras da poesia. 

Cabeças enfileiradas, que sobre vossos cabelos e calvície pouse o impiedoso pássaro da palavra desolação. Assole vosso espírito a árida lucidez com a qual compreenderão os extremos da difícil palavra: pétrea presença lança-nos ao vazio abissal.

Ombros amparam o pouso da palavra, ave de estimação não alça voo distante do meu corpo. Cabeças enfileiradas sede irmãs da áspera beleza, contemplem a violência da palavra desolação. Só então construam poemas com a carne e alma atormentada de outras palavras.
Espécie endêmica do éden:
Serpente que enreda-se
nos ramos da macieira
Silvo semelhante à voz humana
torna compreensível cada signo

Espécie endêmica 
do paraíso: a macieira 
esplêndida por seu viço
Diferencia-se das demais árvores
pelos frutos interditos ao consumo
de todo espécime animal

Obs: a espécie expulsa 
por inadaptação ao ambiente
subdivide-se em dois grupos
Os que buscam readaptar
o modus vivendi 
ao antigo habitat 
para reconquistá-lo
E os que desenvolveram
apuradas técnicas
e cultivam o fruto maldito
em terras distantes ao éden


Nicole Kidman interpretando Virgínia Woolf  em The Hours.

Sobre o grande gramado
crianças apiedam-se
de um pássaro morto

o tempo é outro 
regendo seu corpo

Árvores frondosas
respiramos tua sombra
esquecidos que houve
o fruto entre as folhas
cujas cores proferiam o podre
e a náusea nos impedia de colhê-lo

Ilegível aos olhos humanos
poderão os anjos lê-lo?
Difícil signo elegido
pela poesia como insígnia
de uma praça inscrita
no coração da cidade:

Dia ainda luminoso
quando enforcou-se
o andarilho encenando
um fruto suspenso

Para a ceia indigesta
reuniram-se os homens
O jornal local interpelou
testemunhas que viram
um estrangeiro esmolar
por ruas próximas
na desolação da tarde

Não há memórias
no olhar maciço
o busto de bronze
apenas ampara
o pouso dos pombos

Difícil signo elegido
pela poesia como insígnia
de uma praça inscrita
no coração da cidade:

A esperança em contemplar
crianças apiedarem-se
de um pássaro morto


Sobre a poça de chuva
um cachorro
detém os passos
e bebe

Brilham as ruas
ainda úmidas

Bela atmosfera
oriental
pacifica o poema
mas, a latente
inquietude
das palavras
precisa traduzir-se:

Poça de chuva
de rasa lâmina
refletido o céu
a reescreve
profundidade abissal
Onde cravam-se
as quatro patas do cão 
que sedento
sorve o abismo
Pensas a transparência
Vidro que envolve sem ocultar:
Sob a pele dos porta-retratos
a infância dos mortos comove

Pensas a pureza: signos 
que apaziguam o percurso

Mas, a assepsia soa estrangeira
aos que herdam a ancestral
desolação das palavras noturnas

Soa a doce e ininterrupta
voz que conduz os frutos
ao seu ápice noturno.

Assemelha-se ao sono
povoado pela difícil
sinfonia dos pesadelos.

Lâmina que transpassa a maçã,
assim entrega-se à travessia
o homem que compreende
para os dias de paz ou dúvida
o rumo inscrito no corpo:

rumor das palavras
interna luta sem trégua.



À deriva na branca monocromia

deslizam os olhos 
por todos os cantos
em busca de pouso 
para os pássaros noturnos

Desespera-se o espírito
que segue solitário
pelo exangue deserto

Desoladora ausência
de palavras que ofereçam
a sombra de sua negra silhueta

Não escolhi conduzir meus ossos
sob a iminência das tempestades

Nenhum pai dedicaria aos filhos
a difícil escrita das lâminas

Mas em cartas suicidas
são as palavras
sobretudo carne

Impossível compô-las
amenas como as manhãs