Não servem de superfície 
para o pouso: incitam ao voo

Estendendo sobre elas 
o cansaço compreende-se 
os limites do corpo
diferentes daqueles 
desafiados pelos 
montanhistas

Contam a história
da exaustão humana

As palavras negam o silêncio 
necessário ao sono

Não queira que nos poemas
as palavras construam acalantos


Edward Hopper.


Conduza o tato
pelo inóspito

onde não
se reconhece
face alguma
embora estejam
desesperadamente
acesos os olhos

O amorfo
anseia um nome
e a vontade 
de nomear
consome
sobrepõem-se
à sede à fome
ao cio

Não é estrangeiro
aquele que as palavras 
conduzem pelo inóspito



   Lendo tuas cores compreendi a violência de escrever-te sob os significados do silêncio. 
   Então és o espelho onde aprendo que os crânios percorrem a superfície surdos ao rumor dos animais noturnos. Imperceptíveis os pensamentos acesos, mesmo que os olhos não sejam insondáveis.
   Devo estender a todas as coisas (pétalas, livros, ossos) o ensinamento da infância: pousar o ouvido na concha e ouvi-la entoar o mar.

   O percurso construído com passos acesos. Pés avançam oscilando entre lucidez e loucura, certeza e dúvida, vivendo as palavras como a textura do chão. 
   Quão intenso foi mover-se pela longa superfície desperta para agora, adormecidas as cores, os sons, hora em que toda forma funde-se em sombra ininterrupta, asseverar: a noite será imensa. 
   Que violenta leitura: essa noite será imensa. 
sem veemência
vermes comem

em mim busco
imagem diferente
que apazigue a náusea

leio no lento
avanço das raízes
espécie de esperança
mudam alteram
transformam
metamorfoseiam
os verbos
nos versos
dirão não
serem mais os mesmos

embora ilegíveis
da superfície
sob o breve pouso
como estivessem 
intactos
serão lidos
pelo desatento pássaro

pode-se confiar na
lúcida leitura
dos próprios olhos?

veem a partir de outro tempo
mais lento e silencioso
diferente matéria os molda
mais densa e calma
a luz que emanam
agora sóbria e amena

não são mais os mesmos
menos elétricos mais ternos

os olhos mantém a vivacidade
que arrefece na carne




pombos abrigam-se sob
formas que ornam beirais

assemelha-se a sangue seco
o negro percurso inscrito
pela água na face
anciã da construção

não interrogo 
quais outros olhos
somente leio
a lenta chuva
contra a claridade
da manhã

na qual
um homem
anônimo
animalizado
revolve o lixo
do fast food

o silêncio
impalatável
alerta que
o beco
será por 
muito tempo
um poema 
uma bandeira





eis o que fazes: fabricas fezes
resume-se em rês: pasce rumina defeca
embora seja pobre analogia
porque és impróprio
ao estômago humano

desejo seja outro o trono
desgovernes tuas próprias vísceras
numa descomunal diarreia

buscaria melhores imagens
para opor à tua dileta: rei
mas sopesar palavras
com o talento ferino
do boca do inferno
não me é natural

inestancável o tempo
transcorrem séculos
e sempre há cus inúteis
ocupando a cúpula
a reger sobre confortáveis
cadeiras giratórias






ao poema importa
amanheçam os olhos
limpos

o pó se dissipe

horizonte legível
a mão aponte: é ali
passos lúcidos
conduzam

ao poema porta


Cacos

  Desconstruiu-os em cacos. Apenas um copo em casa será suficiente. Intacta também permaneceu a taça em que todas as noites bebe seu vinho, seco porém suave, enquanto lê, escreve ou nas horas apáticas apenas navega pelo facebook. Satisfeita, pensa irônica, Personalizei o milagre da multiplicação.
   O sol das oito em diante ilumina toda a cozinha. As margens dos cacos brilham, os vidros transformam a luz em raios coloridos contra o chão de cerâmica branca. Já é quase hora de sair, depois eu varro tudo isso. Descalça vai até a sala buscar os sapatos. Interrompe o solilóquio do apresentador do telejornal desligando, indiferente, o televisor. Só fala sobre o trânsito de sampa, tô a mais de quinhentos quilômetros da capital. Precisa algum crime fudido ou explodirem caixas eletrônicos para o interior se tornar manchete. Calça-os. O percurso de volta não é silencioso, os vizinhos do andar de baixo, se ainda não foram trabalhar, ouvirão seus passos ritmados pelos saltos.
   Passando em frente à cozinha espera, contempla o inóspito jardim que acabara de plantar. Caules abruptos, estéreis, acesos pela claridade matinal. Só três passos sobre e avivaria esse jardim com pétalas de um vermelho intenso se dissolvendo, escorrendo, tingindo as transparências. Pensamentos que a percorrem com incrível velocidade, enquanto mantém o olhar fixo nos copos quebrados.
urubus
abundam

não ferem
nem maculam
o azul

calam
silêncio
semelhante
ao céu
desabitado
O governo produziu 
material didático 
apresentando o passo-a-passo
necessário aos alunos 
aprimorarem a prática da apneia.

Divulgou na mídia a nova 
proposta educacional.

Olhos atentos leram o oculto:
o projeto quer os jovens
com fôlego bastante
então submersos
no absoluto silêncio
não esbocem gesto
algum de protesto.

A assessoria de imprensa replicou:
a proposta é de primeiro mundo.

O absurdo soou fundo
alunos e professores fartos
organizaram o basta.

O governo ordenou 
homens de farda avançarem 
sobre os estudantes petulantes.
Cassetetes batem contra os escudos
para impor o ritmo botas pisam forte.

O som da marcha não assombra 
o suficiente para romper 
a corrente humana.
Cada elo encara resoluto.

Entre os alunos circula
impresso de forma artesanal
um manual que ensina 
a reescrever os pulmões:

querê-los amplos onde o vento 
invente vozes ao percorrer a verde
lâmina das folhas

soe sábio sobre as superfícies

sopre intenso anunciando tempestades.