Cacos

  Desconstruiu-os em cacos. Apenas um copo em casa será suficiente. Intacta também permaneceu a taça em que todas as noites bebe seu vinho, seco porém suave, enquanto lê, escreve ou nas horas apáticas apenas navega pelo facebook. Satisfeita, pensa irônica, Personalizei o milagre da multiplicação.
   O sol das oito em diante ilumina toda a cozinha. As margens dos cacos brilham, os vidros transformam a luz em raios coloridos contra o chão de cerâmica branca. Já é quase hora de sair, depois eu varro tudo isso. Descalça vai até a sala buscar os sapatos. Interrompe o solilóquio do apresentador do telejornal desligando, indiferente, o televisor. Só fala sobre o trânsito de sampa, tô a mais de quinhentos quilômetros da capital. Precisa algum crime fudido ou explodirem caixas eletrônicos para o interior se tornar manchete. Calça-os. O percurso de volta não é silencioso, os vizinhos do andar de baixo, se ainda não foram trabalhar, ouvirão seus passos ritmados pelos saltos.
   Passando em frente à cozinha espera, contempla o inóspito jardim que acabara de plantar. Caules abruptos, estéreis, acesos pela claridade matinal. Só três passos sobre e avivaria esse jardim com pétalas de um vermelho intenso se dissolvendo, escorrendo, tingindo as transparências. Pensamentos que a percorrem com incrível velocidade, enquanto mantém o olhar fixo nos copos quebrados.

Nenhum comentário: