Paisagem acolhe os olhos
Barcos imóveis lembram 
iogues em posição de lótus

Pele impassível impele
ao mergulho, súbito
significo o desritmo

Água fria de afiladas lâminas
Faquir o crepúsculo estende 
seu corpo em chamas
sobre o fálico horizonte
dos mastros adormecidos
na enseada


Tornar-se-á ausência
ocupando o mesmo espaço
frágil pouso dos pássaros
sensível ao mínimo movimento
retomam voo

Será o estranho astro
espectro em busca
da palavra que o traduza

Poucos porta retratos
pelo apartamento 
muitos livros de poesia
E a dúvida: guardá-los para a filha?

Os parentes darão pêsames
perguntarão por indícios
Recordarás as conversas
sobre o suicídio dos poetas
Maiakovski Paul Celan
Torquato Ana Cristina César

Ouvir-te-ão perplexos
como pronunciasses algaravias
ou a surrealidade de algas marinhas
enlaçando-te pelos pulsos
convidando à dança submarina

Mas o foda mesmo,
são os melancólicos miados
do gato circulando pelos cômodos
com saudades do seu dono

A embriaguez
aproxima dos deuses
os poetas que lestes

Acolhes os poemas
nunca escolhidos
para compor
antologias celestes

Eis os bem-aventurados
que na pujança
partilham o pão
e na escassez
traduzem a fome

Ora reluz a palavra
como ouro
outrora é rota
em andrajos

Os pobres de espírito
espreitam a poesia
em busca da pureza
perdida, mas no coração
do éden há uma fonte
onde anjos de pedra urinam
e trazem na fisionomia
a piedade esculpida

Os bem-aventurados
passeiam pelo jardim
de Hyeronimus Bosch
plantando flores
no ânus dos homens

A embriaguez
aproxima dos deuses
os poetas que lestes


Navalha espanhola
navega teus olhos
Tristes órbitas
fruto repartido
o cerne revela-se
fluxo de visões

Permita que a lâmina
cegue o silêncio
desse espelho líquido
onde narciso contemplaria
o derradeiro desejo

Árvores curvam-se
sobre águas escuras
Ar gélido das margens
Aroma compreendido:
sagrado incenso

Carrega-se inscrita
a dor incurável

Então, Kerouac
adormece 
no leito seco
de um rio 
sob as estrelas
Vincos do prédio vingam
mínimas samambaias
Imaginá-las na face
dos abismos
traduz teu espírito

Há tristeza
em compreender
as nódoas de umidade
no concreto
como memórias inscritas
na brancura dos ossos

Excesso de luz
cega tanto quanto
treva absoluta

Com cuidado conduzas
pelos extremos os passos

A palavra anjos
aflige teus olhos
Recordas 
no quarto da avó
havia um hagiológio

Dura lição:
de carne e osso
é o cárcere
O espírito que 
tragicamente liberta-se
atinge a santidade.
Rio fluindo sobre o leito
O tempo não detém sua escrita
Os pobres dedos de chronos
ao afagar o corpo
do poema onde forjo-me
lâmina ritual
prosseguem o percurso
alheios ao próprio sangue


Compreender o ritmo é a cura
A sombra do voo
acaricia a superfície
Observo o espectro
fazer de espelho
a face dos prédios
enquanto afasta-se a ave
em luminoso silêncio

A palavra pássaro
entrega-se ao naufrágio
até que meus olhos
transpareçam a paz
da maré baixa
Não o diário lirismo
de uma taça de vinho
ou qualquer dose
nos fins de tarde

Para os dias difíceis
considera-se a visceralidade
de um vício

Vide a poesia
ao não dissociar-se 
da vida
quem a acolhe carrega
inscrito até os ossos
os signos do vínculo

Cão-guia 
conduz 
o cego
observo-os
entre transeuntes
que nunca lerão
os versos do Inferno
onde Cérbero
habita

O cio das fêmeas
sobras de fast food
não distraem
o cão adestrado

Já a destra
leva-me
por texturas
leio o cheiro
e a febre

O que não seja 
desejo
faz-se 
ilegível

Com maestria
a poesia
rege
rumo
ao abismo


Haikus de Leopoldo María Panero

Um lago nasceu:
em meu crânio
flutuam os peixes.

***

Fêmea que entre minhas coxas calavas
de todos os favores que pude prometer
te devo a loucura.

***

Choras entre minhas coxas, amada:
o cadáver da poesia
é a substância de meus versos.

***

Na areia
jaz um morto
é o mesmo
jazer entre palavras.

***

Estou de joelhos ante a rocha.
Quem fui, sabe a rocha.
Que não serei ninguém ao fim, a rocha diz
e o vale o ecoa.

***

Um porco
fecha a porta
uma ave
cai como saliva sobre a página.

***

De uma rocha 
pendem dois homens
melhor seria
pender de uma nuvem.

***

Un lago ha nacido:
en mi cráneo 
flotan los peces.

***

Hembra que entre mis muslos callabas
de todos los favores que pude prometerte
te debo la locura.

***

Lloras entre mis muslos, amada;
el cadáver de la poesía
es la sustancia de mis versos.

***

En la arena
yace un muerto
es lo mismo
yacer entre palabras.

***

Estoy de rodillas ante la roca.
Quién fui, lo sabe la roca.
Que no seré nadie al fin, la roca lo dice
y el valle difunde.

***

Un cerdo
cierra la porta
un ave
cae como saliva sobre la página.

***

De una roca
penden dos hombres
mejor sería
pender de una nube.


El último hombre, 1983.
leio levitar o olor
no mormaço da tarde
frutas equilibram-se
tênue linha entre
o palatável e o podre

sinto soar
os táteis acordes
da carne

ampla página
para os sentidos
a sinestesia silencia
as fronteiras

olhos acariciam
o silêncio da superfície
mas a pele colhe
o ritmo inscrito
acolho as Visões
não anseio lenitivos
ou signos que anestesiem
a língua lamberá
com ternura animal
a chaga ainda em chamas
colorida como fruta madura

sinto soar
os táteis acordes
da carne




Espada 
transpassa 
a carne
mesma naturalidade
cotidiana do cuteleiro
ao atravessar a rua
hálito ainda forte de café

As portas de aço
da cutelaria
fecham e abrem-se
na vertical
são pálpebras
semelhante à ascensão
e queda dos anjos

Incide o sol
iluminada a lâmina
um espírito santificado

O fim de Anacreonte 

Quando enfim, Álcman, amor nos declaramos
não em uma árvore quisemos gravar as núpcias
eu vestido de mulher, em teu cabelo diademas
não em uma árvore quisemos gravar aquela união
e que fora a dríade do único portento
testemunha vã e muda, pois detesto os deuses:
no meio daquele bosque encontramos um menino
em suas costas rosadas, com fogo,
lentamente escrevemos os nomes.

Cuando por fin, Alcmanes, amor nos declaramos
no en un árbol quisimos grabar el desposorio
yo de mujer vestido, tú en el pelo guirnaldas
no en un árbol quisimos grabar aquella unión
y que fuera la driada del único portento
testigo vano y mudo, pues detesto a los dioses:
en medio de aquel bosque tropezamos a un niño
y en su espalda rosada, con fuego,
lentamente escribimos los nombres.

Leopoldo María Panero. Dioscuros, 1982.

( O fim de Anacreonte é composto por cinco poemas, aqui traduzo apenas um deles)
os pés acariciam
a espessa pele
de poeira que 
envolve móveis velhos
potes de vidro vazios
são olhos vazados

teias desabitadas

e outros signos
ateiam desolações

acaso esses assombros

assombram a memória
de mais alguém?

são ocaso


mas o menino
ainda encontra
soldados de chumbo
no chão do chalé
ritmo suave
maré baixa
embala os barcos

baía anoitecida

lábios sussurram
esperanças à ferida
ainda aberta

na superfície
dos olhos
não lê-se 
signos de alívio
flutuarem 
entre
constelações
de peixes mortos