dentro do olho é presença
não com a consistência 
da pedra com a 
esperança da semente
o silêncio do caroço
a quietude do osso

como a palavra
que permanece
à espera no poeta

é presença que exala
convoca pássaros
de bico afilado 
propício para 
romper a casca
transpassar a polpa
dentro do olho
buscar a lembrança

   Traduções do poeta espanhol Leopoldo María Panero que realizei para o blog português Poesia, vim busca-te.


SERENIDADE
               A Martin Heidegger

Há somente duas coisas: meu rosto desfigurado
e a dureza da pedra.
A consciência somente se acende
quando o ser está contra ela:
é assim que todo conhecimento
e a matriz de toda figura
é uma ferida,
e somente é imortal
o que chora.
A noite, mãe da sabedoria
tem a forma inacabada do pranto.

******************

A luz, a luz
quando estava muito perto do mar
limite do deserto
do deserto em que florescem as rosas cruéis
famélicas do homem.

*******************

As palavras
constroem o bosque
uma árvore é somente uma árvore
quando tocada pelo poema.

*******************

Os sinos varrem o som
anunciam letra a letra o deserto
em que uma flor apodrece entre as mãos murchas
                                          de uma velha
que chora por haver perdido seu nome.


SERENIDAD
            A Martin Heidegger
Sólo hay dos cosas: mi rostro desfigurado
y la dureza de la piedra.
La conciencia sólo de enciende
cuando el ser está contra ella:
y es así que todo conocimiento
y la matriz de toda figura
es una herida,
y sólo es inmortal
lo que llora.
Y la noche, madre de la sabiduría
tiene la forma inacabable del llanto.

***
La luz, la luz
cuando estaba demasiado cerca del mar
límite del desierto
del desierto en que florecen las rosas crueles
hambrientas del hombre.

***
Las palabras
construyen el bosque
un árbol es sólo un árbol
cuando lo toca el poema.

***
Las campanas barren el sonido
enuncian letra a letra el desierto
en que una flor se pudre entre las manos ajadas
                                      de una vieja
que llora de haber perdido su nombre.


HINO A SATÃ

Somente a neve sabe
a grandeza do lobo
a grandeza de Satã
vencedor da pedra desnuda
da pedra desnuda que ameaça o homem
que invoca em vão a Satã
senhor do verso, desse agulheiro
na página
por onde a realidade
cai como água morta.

HINO A SATÃ (2ª versão)

A grandeza do lobo
não é a penumbra
nem o ar
é somente o fulgor de uma sombra
de um animal ferido no jardim
à noite, enquanto tu choras
como no jardim um animal ferido.

HINO A SATÃ (3ª versão)

Os cães invadem o cemitério
e o homem sorri, inquieto
ante o mistério do lobo
e os cães invadem a rua
em seus dentes brilha a lua
mas nem tu nem ninguém, homem morto
espectro do cemitério
saberá se aproximar amanhã nem nunca
do mistério do lobo.

HIMNO A SATÁN

Sólo la nieve sabe
la grandeza del lobo
la grandeza de Satán
vencedor de la piedra desnuda
de la piedra desnuda que amenaza al hombre
y que invoca en vano a satán
señor del verso, de ese agujero
en la página
por donde la realidad
cae como agua muerta.

HIMNO A SATÁN (2ª versión)

La grandeza del lobo
no es la penumbra
ni aire
es sólo el fulgo de una sombra
de un animal herido en el jardín
de noche, mientras tú lloras
como en el jardín in animal herido.

HIMNO A SATÁN (3ª versión)

Los perros invaden el cementerio
y en hombre sonríe, extrañado
ante el misterio del lobo
y los perros invaden la calle
y en sus dientes brilla la luna
pero ni tú ni nadie, hombre muerto
espectro del cementerio
sabrá acercarse mañana ni nunca
al misterio del lobo.
















escrever: na ostra
molusco oculto
limítrofe entre
o asco e o raro
de acordo com
o paladar demonstra
a relação do criador
com a obra

a mosca 
é obra

e também 
vertiginosa
velocidade
das asas
invisíveis em 
pleno voo
reescrevendo
a mosca
estrela negra
suspensa no 
céu da sala

tudo é obra

resta ao poeta
que passeia
pelos arredores
de Paris ouvir
a constelação
zumbir sobre
a obra e compor 
a sua trazer
ao poema
o lirismo
da carniça

criador
é também
obra



A víbora.

Durante longos anos estive condenado a adorar uma mulher depreciável
Sacrificar-me por ela, sofrer humilhações e troças sem conta.
Trabalhar dia e noite para alimentá-la e vestir,
Levar a cabo alguns delitos, cometer algumas faltas,
À luz da lua realizar pequenos roubos,
Falsificações de documentos comprometedores,
Sob pena de cair em descrédito ante seus olhos fascinantes.
Em dias de mútua compreensão percorríamos os parques
E nos fotografávamos navegando uma lancha a motor,
Íamos a um bar com música ao vivo
Onde nos entregávamos a uma dança desenfreada
Que se prolongava até altas horas da madrugada.

Longos anos vivi prisioneiro dos encantos daquela mulher
Que costumava chegar ao meu escritório completamente nua
Executando as contorções mais difíceis de imaginar
Com o propósito de incorporar minha alma à sua órbita
E, sobretudo, para me extorquir até o último centavo
Proibia estritamente de me relacionar com minha família
Os amigos eram separados de mim mediante acusações difamadoras
Que a víbora publicava em um jornal de sua propriedade
Apaixonada até o delírio não me dava um instante de trégua,
Exigindo peremptoriamente que beijasse sua boca
E que respondesse prontamente a suas néscias perguntas
Várias delas referentes à eternidade e à vida futura
Temas que produziam em mim um lamentável estado de ânimo,
Zumbidos nos ouvidos, repetidas náuseas, desalentos prematuros
Que ela sabia aproveitar com o espírito prático que a caracterizava
Para se vestir rapidamente sem perda de tempo
E abandonar a sala me deixando com a cara no chão.

Esta situação se prolongou por mais de cinco anos.
Por um tempo vivemos juntos num quarto
Que dividíamos em um bairro de luxo perto do cemitério
(Algumas noites tivemos que interromper nossa lua de mel
para enfrentar as ratazanas que invadiam pela janela).
Levava a víbora um minucioso livro de contas
Onde anotava até o mínimo centavo que eu pedia emprestado;
Não me permitia usar a escova de dentes que eu mesmo a havia dado
E me acusava de ter arruinado sua juventude:
Lançando chamas pelos olhos me levava a comparecer perante o juiz
E pagar dentro do prazo estipulado parte da dívida
Pois ela necessitava do dinheiro para prosseguir seus estudos
Então tive que sair às ruas e viver da caridade alheia,
Dormir nos bancos das praças,
Onde fui encontrado moribundo muitas vezes pela polícia
Entre as primeiras folhas do outono.
Felizmente aquela situação não durou muito,
Porque certa vez em que me encontrava em uma praça também
Posando diante de uma câmera fotográfica
Umas deliciosas mãos femininas me vendaram súbito os olhos
Enquanto uma voz amorosa perguntava sabes quem é.
És tu meu amor, respondi com serenidade.
Anjo meu, disse ela nervosamente,
Permita que me sente em teus joelhos uma vez mais!
Então pude perceber que ela usava apenas uma pequena
                                               calcinha.
Foi um encontro memorável, ainda que pleno de notas dissonantes:
Me comprou um terreno, não distante do matadouro, exclamou,
Ali penso em construir uma espécie de pirâmide
Onde possamos passar os últimos anos de nossas vidas.
E já terminei meus estudos, me formei advogada,
Disponho de um bom capital;
Dediquemo-nos a um negócio produtivo, nós dois, meu amor, agregou,
Longe do mundo construamos nosso ninho.
Basta de sandices, repliquei, teus planos me inspiram desconfiança,
Lembra que de um momento a outro minha verdadeira mulher
Pode deixar-nos a todos na miséria mais espantosa.
Meus filhos já estão crescidos, o tempo transcorreu,
Me sinto profundamente esgotado, deixe-me repousar um instante,
Traga-me um pouco de água, mulher,
Consiga-me algo para comer, qualquer coisa,
Estou morto de fome,
Não posso trabalhar mais para ti,
Tudo está acabado entre nós.


Nicanor Parra, poema integrante da obra Poemas y antipoemas, 1954.

Poema traduzido graças ao incentivo do amigo Edivaldo Ferreira, o Eddie. 



LA VÍBORA


Durante largos años estuve condenado a adorar a una mujer despreciable
Sacrificarme por ella, sufrir humillaciones y burlas sin cuento,
Trabajar día y noche para alimentarla y vestirla,
Llevar a cabo algunos delitos, cometer algunas faltas,
A la luz de la luna realizar pequeños robos,
Falsificaciones de documentos comprometedores,
So pena de caer en descrédito ante sus ojos fascinantes.
En horas de comprensión solíamos concurrir a los parques
Y retratarnos juntos manejando una lancha a motor,
O nos íbamos a un café danzante
Donde nos entregábamos a un baile desenfrenado
Que se prolongaba hasta altas horas de la madrugada.

Largos años viví prisionero del encanto de aquella mujer
Que solía presentarse a mi oficina completamente desnuda
Ejecutando las contorsiones más difíciles de imaginar
Con el propósito de incorporar mi pobre alma a su órbita
Y, sobre todo, para extorsionarme hasta el último centavo.
Me prohibía estrictamente que me relacionase con mi familia.
Mis amigos eran separados de mí mediante libelos infamantes
Que la víbora hacía publicar en un diario de su propiedad.
Apasionada hasta el delirio no me daba un instante de tregua,
Exigiéndome perentoriamente que besara su boca
Y que contestase sin dilación sus necias preguntas
Varias de ellas referentes a la eternidad y a la vida futura
Temas que producían en mí un lamentable estado de ánimo,
Zumbidos de oídos, entrecortadas náuseas, desvanecimientos prematuros
Que ella sabía aprovechar con ese espíritu práctico que la caracterizaba
Para vestirse rápidamente sin pérdida de tiempo
Y abandonar mi departamento dejándome con un palmo de narices.

Esta situación se prolongó por más de cinco años.
Por temporadas vivíamos juntos en una pieza redonda
Que pagábamos a medias en un barrio de lujo cerca del cementerio.
(Algunas noches hubimos de interrumpir nuestra luna de miel
Para hacer frente a las ratas que se colaban por la ventana).
Llevaba la víbora un minucioso libro de cuentas
En el que anotaba hasta el más mínimo centavo que yo le pedía en préstamo;
No me permitía usar el cepillo de dientes que yo mismo le había regalado
Y me acusaba de haber arruinado su juventud:
Lanzando llamas por los ojos me emplazaba a comparecer ante el juez
Y pagarle dentro de un plazo prudente parte de la deuda
Pues ella necesitaba ese dinero para continuar sus estudios
Entonces hube de salir a la calle y vivir de la caridad pública,
Dormir en los bancos de las plazas,
Donde fui encontrado muchas veces moribundo por la policía
Entre las primeras hojas del otoño.
Felizmente aquel estado de cosas no pasó más adelante,
Porque cierta vez en que yo me encontraba en una plaza también
Posando frente a una cámara fotográfica
Unas deliciosas manos femeninas me vendaron de pronto la vista
Mientras una voz amada para mí me preguntaba quién soy yo.
Tú eres mi amor, respondí con serenidad.
¡Ángel mío, dijo ella nerviosamente,
Permite que me siente en tus rodillas una vez más!
Entonces pude percatarme de que ella se presentaba ahora provista de un pequeño
............................ taparrabos.
Fue un encuentro memorable, aunque lleno de notas discordantes:
Me he comprado una parcela, no lejos del matadero, exclamó,
Allí pienso construir una especie de pirámide
En la que podamos pasar los últimos días de nuestra vida.
Ya he terminado mis estudios, me he recibido de abogado,
Dispongo de un buen capital;
Dediquémonos a un negocio productivo, los dos, amor mío, agregó,
Lejos del mundo construyamos nuestro nido.
Basta de sandeces, repliqué, tus planes me inspiran desconfianza,
Piensa que de un momento a otro mi verdadera mujer
Puede dejarnos a todos en la miseria más espantosa.
Mis hijos han crecido ya, el tiempo ha transcurrido,
Me siento profundamente agotado, déjame reposar un instante,
Tráeme un poco de agua, mujer,
Consígueme algo de comer en alguna parte,
Estoy muerto de hambre,
No puedo trabajar más para ti,
Todo ha terminado entre nosotros.











A pesada estrutura do viaduto 
reescreve com lirismo 
luz e sombra sobre 
duas prostitutas
e um travesti

Goya gozaria
esse claro escuro
Hopper comporia
com primor o 
crepúsculo humano
Baudelaire louvaria
o poder da pintura
ao sublimar a ruína
que o céu assiste mudo

No mesmo percurso
de indócil beleza
há ainda versos
para os olhos abertos
do cachorro morto
visto quilômetros
depois do viaduto

   Não segura pela asa. Quatro longos dedos, na infância a mãe dissera serem de pianista, transpassados pelo branco arco e o polegar isolado no outro extremo enlaçam a xícara de café com leite. Assim a palma lê o calor da superfície. Quente a cerâmica, mas não o suficiente para desenlaçar o toque. Durante o último gole percebe o montinho de açúcar acumulado no fundo. Formigas assomarão em breve. Ainda assim, pousa a xícara no chão. Palavras inquietas dentro de si: insubordinado sob o peso da túnica o pau duro reage às imagens noturnas que relembram a santo Agostinho a antiga libertinagem. 
   Cerveja preta, três vasos de violeta e um kalanchoe alaranjado no carrinho de compras da velhinha a minha frente na fila do supermercado. A espera poderia nos conduzir a conversar. Possibilidades diversas a deriva. Como para mim tudo é literatura, perguntaria se na pouca quietude que o dia nos reserva, convivera com Emma Bovary, Capitu ou Diadorim. Palavras podem nos oferecer a intimidade romanceada dos diários e autobiografias: percebi com melancolia o fluir do tempo quando a melanina dos pentelhos começou a se esvair. Eu lembraria do sopro impuro que ergueu por um átimo a saia da avó, revelando a resistente nódoa negra do sexo. Limitei-me a respeitar o ritmo da fila,  calcular mentalmente o valor da compra, demorando o olhar sobre seus olhos que as pálpebras modelavam num triângulo retângulo. Luminosidade intacta sob delicados óculos. A sabedoria dança ao redor como tentáculos ou os braços de shiva. Apêndices agregados ao corpo: saber que a presa é também predadora de alguma outra espécie e nem por isso trazem pânico ao passear livre pelas cidades ou deixam de excitar as crianças. 
no fundo do quintal
o cacto se reescreve
em árvore de tão alto

ventos e temporais
sopraram fortes
o corpo cacto
jamais caíra

não por isso
menos indócil
nesse meu
poema menor

vizinha ao cacto
a lavoura do avô
Ervim que nunca
lera Manuel Bandeira
e cultivava aipim
e batata doce
raízes comestíveis
como a memória
que deve ser
triturada pelos dentes
reescrita na língua

o poema-diálogo
o poema-homenagem
o poema-poema
tateia sem medo
a imagem intratável

destemor semelhante
ao do bambuzal
assoviado dia e noite
sobre a afilada

quietude do cacto