Espécie de tratado:

na superfície
a beleza
dá-se fácil

Sem esfinge
ou enigma
Finge-se amiga
Pousa dócil
na página
a palavra

Mas há 
o avesso
a ser 
investigado
onde
vicejam
as vísceras



Decresce o viço
das flores no vaso

Indeterminável
o momento exato
em que tornou-se
árduo
o hábito
de substituí-las

O óbvio
deixou de
sê-lo
selou
a ruptura

Espectadores
assistimos
as cores acesas
tornarem-se negras

Caule e corola
compõe o cadáver
de olhos abertos
Para Joanna Skorupski.

I.

A bisavó polonesa
cultivava flores
e possuía um apiário.
Os dias consumiam-se
entre pétalas e folhas
e alvéolos.

Compreendia o ritmo vegetal,
como os xamãs
curandeiros.

O alzheimer é a chama fosca
dos olhos fixos.
O alzheimer é o não indagar
o azul sem nuvens.
É esquecer os usos
silenciosos da adaga.

Foda-se a desmemória.
Reinventemos para mim
um nome:
sou o estrangeiro que ama
flores incomuns.
As inscreve na própria pele
para que não sejam breves
como os relâmpagos.

II.

Na página é branco
o silêncio.
Orno a monocromia
com estilhaços antigos,
colhidos na autópsia
da criança.

Havia o fogão a lenha,
o termômetro de mercúrio
em forma de galo.
Vasos, muitos vasos
na casa que chamávamos
chalé.
Na parede um brasão polonês,
águia
sobre um fundo rubro.

A Virgem negra 
de Czestochowa
abençoa
os herdeiros do holocausto.

Lembro dos livros
manuais de botânica.
O quadro
com borboletas mumificadas.
E no bojo de um vidro
o alvíssimo
cisne de açúcar
capturado
nas bodas
já esquecidas.





Uma tradução minha publicada no blog Poema Diário de Daniel Russell Ribas

http://pordiaumpoema.blogspot.com.br/2014/03/ana-maria-moix.html

Ana María Moix

 Fechei a porta. Desci as escadas. Deparei-me com vigia e se partiu o silêncio. Supliquei a ele que não dissesse, mas disse: Hoje não virão, senhorita; não os atrai. Ainda não havia retornado, na esquina o ouvi falar ao guarda da taberna: essa moça está louca. Todo dia, às doze, desce para abrir a porta aos mortos. Tive que deter o tio Jacobo que queria desafiá-lo a um duelo. Tio Jacobo morreu antes dos 36 e não estava acostumado com a má educação dos vigias ao tratar as senhoritas.


Cerré La puerta. Bajé las escaleras. Tropecé com el sereno y se ronpió el silencio. Le suplique com um gesto que no lo dijera y lo dijo: Hoy no vienen, señorita; no les toca. Y aún no había vuelto yo La esquina oi cómo Le iba com el cuento al guarda de la taberna: Está loca esa chica. Cada día, a las doce, baja para abrir la puerta a los muertos. Tuve que retener a tío Jacobo que queria retarle a um duelo. Tío Jacobo murío antes del los 36 y no estaba acostumbrado a la mala educación de los serenos para com las señoritas.

Cortejo de animais
fareja meus poros.
A fêmea sabe-se
corola acesa.
O macho compreende
o odor a quilômetros.
Espécie de cio
inscreve-se na pele.
Cortejo de animais
fareja meus poros.

Há lascívia em ler
o aroma do livro novo.
Há lascívia no sommelier.
Há lascívia em colher
uma folha de chá
e cheirá-la.
Em fechar os olhos
e respirar o hálito
com profundos haustos.

Exploro.

Dedos 
tateiam
tuas pétalas,

ornados

cada poro
alvéolo
do olor.

Ao vê-los
efêmeros,
logo inodoros
insípidos

apenas dedos

colho teu rastro
maturo o fruto
sirvo-o
ao meu olfato.
Percebo:
perfume
sumo
lume
selvagens.

Sigo
o
signo.
Animal
farejo.

Cortejo 
de palavras
traduzem:
pele
especular
onde re
vivo

espetáculo,
teu
sexo.




After Gottfried Benn - Leopoldo María Panero

After Gottfried Benn

Imitação póstuma de Gottfried Benn
"es gibt nur zwei Dinge: die Leere
und das gezeinichte Ich"
(GOTTFRIED BENN, Nur Zwei Dinge.)

Mais uma vez erraste, o Fracasso
não possui limites - tu sim.
Somente esta obscura tristeza sem 
voz - enquanto, por perto, ouves essas vozes:
poderia-se dizer que estás louco
                                                como os
que ouvem outras.
                          A habitação
escassa, tediosa, está plena
desse inefável mal cheiro - ali
somente o sussurro sufocante,
                                            sempre
da voz de Pilatos, selando a boca.
                                                  Ali
na escuridão, te ajoelhar, sem deixar de aspirar
a pestilência que não nomeia a ninguém, a
                                                               pesada
tristeza sem voz - ajoelhar-se
para rezar, outra vez, a oração
maldita. E te masturbares ouvindo
em teus ouvidos tua própria voz que diz a
uma bolha cega que estourará,
                                             que diz
e dirá - "me golpeie,
me pegue, por favor.
Por favor".
                E se for assim
realmente, logo, a carne
ridiculamente machucada e a vergonha.
                                                          E a habitação
e em um recado, os livros lidos,
a só
essa tristeza sem voz.
Morrerei nesta cela.

Poema da obra NARCISO EN EL ACORDE ÚLTIMO DE LAS FLAUTAS (1979).

O Circo, Leopoldo María Panero.

O Circo

Dois atletas saltam de um lado para o outro da minha alma
lançando gritos e conversas fiadas sobre a vida:
não sei seus nomes. Em minha alma vazia escuto sempre
o balançar dos trapézios. Dois
atletas saltam de um lado para o outro da minha alma
contentes de que esteja tão vazia.
                                                     E ouço
ouço no espaço sem sons
uma e outra vez o rumor dos trapézios
uma e outra vez.
Uma mulher sem rosto canta em pé sobre a minha alma,
uma mulher sem rosto sobre minha alma caída,
minha alma, minha alma: repito essa palavra
não sei se como um menino chamando sua mãe para a luz,
em confusos sons e com prantos, ou simplesmente
para mostrar que não há sentido.
Minha alma. Minha alma
és como a terra seca onde pisoteiam sem ver 
cavalos e carroças e pés, e seres
que não existem de cujos olhos
flui meu sangue hoje, ontem, amanhã. Seres
sem cabeça cantarão sobre minha tumba
uma canção incompreensível. E se
repartirão os ossos da minha alma.
Minha alma. Meu
irmão morto fuma um cigarro junto a mim.

Poema da obra Narciso en el acorde último de las flautas (1979).
I

Estendem-se as pálpebras

sobre o sono das órbitas.

Não será sudário

o lençol ordinário
que simbolizou teu óbito.

O lençol cobrirá o leito

de outro enfermo,
o ciclo:
enfermaria lavanderia 
enfermaria.

Dedos estendem as pálpebras

sobre as pupilas fixas
do morto.

Eu, menino que simulava 

suicídios, sei
ser egoísmo desejar
a imortalidade
mesmo 
a quem se ama 
muito.

O poeta sente a música

das palavras
sob as pálpebras
cerradas.

II


Lástima

is
last
poem
que traduziria
a extrema experiência
murir
con el cuerpo.

Houvesse tempo

diriam ser
delirium tremens

Foda-se o paciente

ser poeta.
Plantonistas leem o prontuário:
histórico psiquiátrico,
miligramas prescritas
de medicamentos,
número do leito.
Foda-se o paciente
ser Leopoldo María Panero.

língua do meu gato
música áspera:

a criança triste cresceu
aos trinta não tinha
lembranças
de ouvi-los trepar
no quarto contíguo

só a poesia os sabe
carne e ossos.
missa não era costume
mas acontecia, às vezes
de unirmo-nos ao cardume
ouvir o pároco

eu criança
parco vocabulário
pouco convívio
com as palavras
para traduzir:

insossa
a hóstia