a água imóvel
ilude, alude
calmos olhos escuros

palavras líquidas:
lago enseada
poça gota
lágrima saliva
sangue urina

Insuficiente
contemplar 
a superfície
meçamos a profundidade
através do naufrágio
buscar o cerne
na palavra
no corpo
esperançoso
de que
próximo ao osso
ouça soarem
promessas de cura
ou alívio duradouro

encenar-se 
criança crédula
dissimular 
nos olhos
o que não
disse em
palavras:

os anjos em queda

o rearranjo de ideias

o pesadelo sem pálpebras


O real arde
sob o nome
realidade

Signo insone 
o sonho 
rememorá-lo
é reler 
cicatrizes

Sob nome algum
o sonho breve:
move-se ave
pela pele

mínimo sopro
impele ao voo

resta 
a palavra:
realidade



finda a dor latente
sangue fluindo a socos
sente-se saudade da dor
porque bem ou mal
era uma presença
no lugar um bem-estar vazio
estás sem a pedra áspera
de estar sempre a espera
do que não acontecerá
embora nada convença
de que o ponto é final
e não apenas reticências

porque há no supliciar-se
uma espécie de gozo
compreender na carne
a dádiva da dúvida
nunca definitivo, sempre possível
jeito estranho de sentir-se vivo
nessa existência fronteiriça
onde equilibra-se luz e sombra




É cedo para convocar

o convalescente à expor
pálpebras e pupilas
que a luminosidade
lenta das manhãs
reescreva as páginas
conturbadas do espírito

Olhos cavos do convalescente

Quando distantes 
e silenciosos
lerem as nódoas 
nas paredes da memória
e a sabedoria das cicatrizes
ser compreendida
tateando forma ao amorfo
talvez esteja pronto

Por enquanto: chagas
recentes e acesas
matizes escarlates
recendem a sangue

as feridas são
um estanque
pôr-do-sol
para o convalescente
que aguarda
palavras noturnas
sobre a conturbada
página do espírito

Tudo será lido
com olhos lúcidos
e menos líquidos




Da palavra 
queda
se erguem
significados: muro 
anjo banido
salto suicida
acidente aéreo

No chão não
és estrangeiro

Queda:

no ápice do ato
se estende o corpo
a difícil superfície
oferece um duro amparo
assim Deus
acolhe o infortúnio
dos filhos: colhes
o fruto do erro

Seja madeira
campo areia
pó asfalto
não te falta
asilo
no chão

Olhos sem sonhos
pesam como pedras
podes arremessá-los
a uma curta distância

Pensas se nos pulmões
houvesse suficiente fôlego
afastarias as tempestades
com um mitológico sopro





Noite em que tudo desaba.

A chuva soa metálica contra a janela do quarto. As gotas soam roucas sobre o telhado. Palavras duras ressoam na memória. 

Noite em que tudo desaba. 

Horas antes, durante a tarde, os únicos presságios foram: perceber o giro irregular do ventilador de teto; a falta de tesão ao folhear um livro, esperando o corpo de passos lentos percorrer o silêncio da biblioteca pública; pessoas próximas e ao mesmo tempo distantes, lendo debruçadas sobre as mesas, lembram a palavra arquipélago; os olhos que tornam-se pássaros fugidios ao evitar o voo sobre as flores fúnebres que os lábios rubros pronunciam.

Inevitável voltar para casa. Ouvir as luzes ruírem. Imergir na noite em que tudo desaba.


Lendo Panero
compreendi o ritmo
da língua
através de blasfêmias

El cráneo
de un enano
clavase en el ano
del más bello
ángel

alrededor
la legión
llora pidiendo
clemencia 
al poeta
que escribe palabras
sucias 
de heces
y sangre
en la blancura
de los huesos

pero el hombre
sigue ebrio
entregue al flujo
del lenguaje


Dios
silencioso

Imagem Malcolm Browne.


Ateaste fogo nos animais

Ao vê-los correr
em selvagem desespero
o noturno esmoler
recolheu o olhar
assustado das crianças
redondo como moedas
depositou-os em tuas mãos

Corações uivaram

Não podes cobrir
teu horror
Olhos borrados
lágrimas escuras
Compreendeste 
a dimensão do amor
ao contemplar o
corpo sem camisa
exibindo sobre o peito
um cemitério calcinado

O coro dos anjos cegos
entoou a canção de Bob Dylan

"How does it feel
To be without a home
Like a complete unknown
Like a rolling stone?"


Seria imbecil
percorrer o dia
medrando a palmos
a profundidade
do abismo

Faça assim:
escreva um bilhete
assine e sele com sangue
Proteja-o no bojo
de uma garrafa
Tenha em mãos o copo
bem cheio de água
engula-a pensando
numa cápsula contra
dor de cabeça

Deixe que siga por
sendas inominadas
Avance pelos meandros
além do estômago

O ritual é simbólico
espécie de oração
Não espere resposta

Monologue
com os próprios
demônios




São necessários dedos
que não tremam
ante o sangue
e sons lancinantes

Mãos que conduzam
o bisturi pelo corte
cirúrgico e preciso
sobre o ponto exato
e removam a palavra
inicial o começo de tudo

Mas temo que seja tarde
o vocabulário em metástase
espalhe pelo corpo
mais imagens às quais
atribuo signos noturnos:

nudez lunar, desamparo,
estrangeiro, alma insone,
etc.



Ofereças teu fôlego
à flauta feita de osso
Fechados os olhos
Bochechas infladas
Sabes soprar os
acordes fluem
acordam as memórias
Os mortos ouvem
em silêncio

Tens talento 
entregas o espírito
ao ato de tocar a flauta
feita de osso

O som parece soar
do próprio sangue

Recordo Gregory Corso
e o poema sobre Miles
soprando lâminas
pela noite americana

Os pulmões os lábios
as técnicas do sopro
O segredo é tornar-se
um só: instrumento e corpo

Mas sei que é desolador
ser o solista da flauta
feita de osso
Também é doloroso
ser o ouvinte e sentir 
a beleza lacerante

A flauta feita de osso
acompanha-nos
pela travessia
entre fantasmas







Li Jack
no desolation
peack contemplando
o amplo horizonte
em busca de incêndios
ateados pelos raios

O forte vento
desgrenha os cabelos
da palavra desolação

Tempestades 
se movem
pelo corpo 
na solidão
da montanha
pensamentos
soam severos

Estás no quarto
andar lendo
Kerouac

só isso

Arte de Suehiro Maruo.



Aproxime-se 
da superfície
vítrea, através
a íris revela-se
dorso de mariposa

insetos são atraídos
pela lâmpada insone

Só de muito perto
podes ler as nuances:
halo esverdeado
cerca o castanho claro
que acolhe esparsos
pontos negros

De muito perto
o hálito impele
ao beijo

Os insetos circulam
em torno até que
apague a luz
o leitor de poesia
e quadrinhos orientais

Nos desenhos 
de Suehiro Maruo
a língua acaricia 
o olho aberto
estimula a pupila
como a um clitóris
A face indecisa
da jovem japonesa
entre o gozo e a agonia

Aproxime-se 
sem náuseas
o sal da lágrima
dissolve na saliva

Pobre pássaro
sacie a sede
de 
gota 
em 
gota


Podes ver
sob o vento
árvores acenam

No adeus
dedos se movem
como pêndulos
porém velozes

Detrás das janelas
olhos se despedem

Do navio os
que partem agitam
lenços brancos
ao cais

A mão silenciosa
rabisca um bilhete
e o deposita sob
o peso de um objeto
pra que não voe

Há muitas maneiras
nenhuma indolor


O que Stéphane Mallarmé quis dizer em seus poemas.


Quis o velho dizer quando já a última lâmpada
no quarto estava apagada
e o sol não nos via, a serpe lançada
com as fezes do dia ao poço da recordação
ao sonho que tudo embaça, ao sonho,
quis dizer o velho que as leis
do amor não são as leis do nada
e somente abraçados a um esqueleto no mundo vazio
sabemos que o amor é nada
e o nada
sendo algo que com o amor e a vida
fatalmente rompe, anseia uma ascese
é por ele que uma cruz nos olhos e um
escorpião no sexo representam ao poeta
nos braços do nada, do nada preenchido
dizendo que nem sequer Deus é superior ao poema.


Da obra Contra España y otros poemas de no amor, 1990.


LO QUE STEPHAN MALLARMÉ QUISE DECIR  EN SUS POEMAS

Quiso el viejo decir cuando ya la última lámpara
en el cuarto estaba apagada
y el sol no nos veía, la sierpe lanzaba
con las heces del día al pozo del recuerdo
al sueño que todo lo borra, al sueño,
quiso decir el viejo que las leyes
del amor no son las leyes de la nada
y que sólo abrazados a un esqueleto en el mundo vacío
sabremos como siempre que el amor es nada,
y que la nada
siendo así algo que con el amor y la vida
fatalmente rompe, quiere una ascesis
y es por ello que una cruz en los ojos, y un
escorpión en el falo representan al poeta
en brazos de la nada, de la nada henchido
diciendo que ni siquiera Dios es superior al poema.



   Pela manhã, recebo-te quando surges da penumbra do quarto de janelas fechadas para a luminosidade da sala. Cabelos desgrenhados, olhos sonolentos, antes mesmo de ir ao banheiro urinar, recebo-te cheirando-lhe o corpo: lóbulos, face, pescoço. Seguro com as duas mãos teu rosto e cheiro. 
  Eu te farejo. Tenho por um instante a consciência de ser um animal. Um animal que não fareja movido pelo desejo e sim por uma lacerante ternura que acaricia-lhe a alma com delicadas lâminas. 
   Olho-te nos olhos, beijo tua bochecha e sorrio meu bom dia em nossa última manhã intacta.
   Chegou em casa encharcada. Rastros líquidos pelos lances de escada. São abruptas as chuvas dos fins de tarde. 

   Ela sabe.

  As gotas açoitam a janela fechada. Soam em rajadas.

  Os olhos estão prontos. Porquê não se dissolvem de uma vez? Seus olhos pulsam. Recorda a maré contra o cais imóvel. Barcos umbilicalmente atrelados. A maré contra os cascos embalando. Estão prontos. Pulsam. Porquê não se dissolvem de uma vez?

  Dica: coloque o crânio sob o fluxo morno do chuveiro. O rumor da ducha te deixará livre para romper em soluços.

  
   Espiou pela janela  após abrir um breve fresta. Brecha. A escuridão parecia mais densa. Poderia compreendê-la sob a aurada palava: treva. Embora aquela noite fosse como as outras. Mal iluminada. Magros postes metálicos, anzóis invertidos, sustentavam luzes acesas sobre o estacionamento. Blocos de apartamentos enfileirados eram soldados em silêncio.
O quê está havendo contigo? Perguntar ao espelho seria tolo. O ato.

   A janela do quarto entreaberta. A estante de livro ao lado. Uma resposta honesta para a pergunta que ninguém lhe fizera: todos esses livros (romances, poesias, biografias, diários, teatro, teoria literária), tantas leituras são sua estratégia de sobrevivência.