dezenas de pássaros pousam (re)voam 
anônimos diante dos olhos: não estes
um pombo um pardal mortos duas
visões estrangeiras no corpo da manhã

silenciaram as asas em pleno voo traçando
uma parábola descendente reescrevendo
o voo queda talvez apagada a minimalista
engrenagem imersa na sombra das folhas
enquanto adormecem as horas azuis
interrogações que não anseiam respostas 

enfim, os olhos colhem aqueles mortos
e buscam asilo nas primeiras luzes
latentes na palavra: manhã

a cinza do cigarro sustenta-se 
horizontal e cilíndrica por 
um tempo muito curto

levitar é metáfora
que sacraliza a ereção

cigarro aceso e pau duro 
emanam uma espécie de febre
reescrevem a hora escura

todo tempo é breve
comparado à vida
sob a dor limite os 
minutos tornam-se eternos

no poema
a palavra
é larva
posta pela
mosca na
ferida aberta

tempo inestancável
mosaico de brevidades
pensá-lo enquanto
o pulso retoma
um ritmo calmo
gotas de suor
resfriam a pele
e não mais 
vivo o vício
pensá-lo por
enquanto é indolor

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               










Primeira urina da manhã
colhida para exames        
laboratoriais

A análise estrutural
quantifica elementos
constitutivos compara-os
com padrões ideais
investiga a presença
insólita vestígio
de enfermidade

Níveis de normalidade
não são espelho
para a poesia
A metáfora dos poetas
denuncia a doença
de toda uma época
passada ou futura

A urina é signo
amarelo esmaecido
colore a lágrima
cristalina

Nos versos de García Lorca
Nova Iorque é uma multidão
que vomita e urina

Com passo extremo
fluxo indócil
Leopoldo María Panero
urina das ruas
até os pés 
de sua mãe

Há líquidos humanos
sangue sêmen
mijo vômito
menstruação     
compondo desenhos
nas paredes
dos escuros
manicômios 

A partir das nódoas
podes imaginar
imagens de animais
ou outras formas
como nas nuvens            
Lendo Leopoldo
Maria Panero
compreendi
o ritmo da língua 
através das blasfêmias

Crânio de um anão
transpassado no ânus
do mais belo anjo

ao redor a legião
chora palavras
por clemência
mas o poeta escreve
odes sujas de fezes 
e sangue na brancura
dos ossos

o corpo segue ébrio
entregue ao empuxo
da linguagem


Deus
silencioso



Imagem feita por Gustavo Petter. Muro do cemitério municipal, Araçatuba/SP.




li Joseph Brodsky 
louvar o olor de algas
da gelada noite veneziana

recordo enquanto percorro
com olhos fechados 
cada meandro do corpo


agrada compreender 
o percurso: gradativa 
construção desse agora 
quando o sumo inscreve-se
o mais doce do mundo
e a língua louva-o
sob as palavras
miraculoso
solar retorno