para Ferreira Gullar

Na mesma manhã
de domingo vi 
a caixa verde escuro
onde as bananas
impróprias para
o consumo
morriam ocultas
exibidas apenas
as intactas e coloridas
de verde ou amarelo
amenos porque
o podre é impalatável
para os olhos 
do consumidor
Todo percurso
do supermercado
à minha casa
ainda que o altere
não conduz a
nenhuma quitanda
onde talvez 
bananas exalem
e a lógica poética
me faça ouvir
o amadurecer
em voz alta
Isso tudo antes
de chegar e saber
sobre a morte do poeta
Olhos tateando a estante
buscam em mim
memórias poéticas
inscritas pelos versos
do poeta morto:
olor de fruta
cheiro de vagina
desoladora beleza
ao versar a morte
E outras lembranças
inaudíveis num
dia comum:
o sarau na faculdade
quando recitei
poemas teus
optei pelo tema
da morte
porque dialoga
comigo que
fracassei no suicídio
Também cada livro
com tua poesia
que habita o apartamento
tem história: dois
chegaram com cheirinho
de novo dados pelo pai
outro já manchado
de poeira encontrado
no sebo e há
os roubados
da biblioteca
Pensar em ti poeta
evoca o poema da
Wislawa Szymborska
sobre o gato no 
apartamento vazio
Como estarão
agora teus gatos
entre tantos livros
obras de arte
e ausência definitiva?
Para eles não és poeta
mas são eles poesia
na tranquila modorra
sobre a escrivaninha
na provisória existência
azul safira
Fui ao teatro
na noite anterior
a nudez encenada
transitava pelo escatológico
para indagar o espectador 
sobre os próprios limites
imagem que ainda
me percorria
na manhã de domingo
corrente elétrica
em busca de tradução
Tua morte poeta
apagou o ontem
esculpe o agora
na bela superfície lunar
de um pedaço
de osso polido
O dia pede
um poema sujo
de muitas vozes
e memórias
tessitura viva
embora o estopim
seja a morte
Digo para minha filha
meu poeta preferido morreu
e mostro teus livros
na estante
ângulos retos
apaziguados
por tantas releituras

escrito em 04 de dezembro de 2016.

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