Estava a manhã esmaecida
talvez a memória 
reescrevera as cores
voz soando à distância
ou ainda os olhos em luto 
compreendendo a luz
as corolas o jardim 

Essência dessa lembrança
a mãe conduz a mão
do menino ao toque

Assim semeia-se o grão
que um quarto de século
após eclode o verso:

A temperatura reptícia
da morte fala à pele sobre 
o inverno ininterrupto
Interrogo se
a forma pulsante
soa dentro de si
ou da matéria
talvez componha
uníssono aos golpes 
do escultor o ritmo que
revelará a verdade

O que pede
para ser dito
discursa dentro
e fora do corpo
para compreendê-lo
exponho-o à febre
da palavra lâmina
aos ventos 
da palavra sonho

Latente na quietude
semente que a noite
da terra gesta
Já não é o silêncio
ilegível espaço negro
o poema
o atesta
textura

Mãos modelam
sabem a morte
sussurrando entre
sabem o afago 
das manhãs 
sabem imatura
a palavra até 
que olhos a colham 
palpáveis como pedra 
ferro carne

A vida ávida
por pronunciar-se

Lição dos ângulos 
retos do teto: 
a teia desabitada 
ainda enleia 
insetos
Imatura manhã
fosse fruto a saliva 
leria o travo que 
precede cores acesas

Luzes reescrevem

Pálpebras entregam
os olhos ao ritmo
que subordina a vida

Encontro tempo para contemplar
(sintaxe estranha à métrica)

Sobre o parapeito
amarelo esmaecido
saltita o pardal com
um inseto no bico

Esqueço a relação entre 
predador e presa
Cem anos incidiram manhãs
(inconsciente de tantas
durante a infância
e o alzheimer)
até a noite ininterrupta

Mesmo dia de março
o correio trouxe 
a antologia com
poemas do Pasolini

Cheirei as páginas novas
(Imerso no ritmo fora do tempo)
Lentos os dedos leram 
textura do belo 
exemplar capa dura

Tinhas um livro de botânica
naquela antiga estante
Diante dela o pó fulgia
ao transpassar os
raios de sol

Enquanto gotas
explodiam contra
o parabrisas
pai e filho
cantavam Roberto Carlos
dentro do fusca branco

Lembranças não são
erguidas em bronze
com olhar inexpressivo
fixo no horizonte

Emergem e submergem
sem regularidade que
sugira analogias com 
relógios, menstruações

Ouço a súbita chuva
regando raízes
formando poças

entre ervas verdes
folhas secas
pássaro defeca 
a semente

à imagem
propícia
ao haiku

optar pelo sexo
que emerge coberto
de fezes e sêmen

escreve a descrença
ante uma espécie
de precipício