displicente o indicador
conduz a xícara vazia
pendurada pela asa

fixo olhar do ciclope
solitário girassol adorna 
a cerâmica barata

não comungo nenhuma
cerimônia do chá
não há formalidades
a serem subvertidas

o sol matinal
ainda não aqueceu 
o vento e já li
dezenas de poemas

estranho prazer
equilibrar a fragilidade
pelas margens da
palavra queda

não tremem as mãos
confiam que renomearei
os estilhaços: jardim
de pétalas afiladas


Lembro o senso de justiça
quando criança libertando
grilos enleados nas teias
tecidas entre roseiras
ignorando a fome
das aranhas

Quem compreende
os predadores?

O poeta pode
não atribuir 
crime ao lobo
pureza ao cordeiro

Rilke leu o lume
dançando distante
nos olhos da pantera
Delicadeza semelhante
a das mãos que amparam
um filhote de pássaro

O azul sem nuvens 
envolve o voo 
silencioso do urubu

Baudelaire ao versar a carniça
libertou a poesia de uma quietude
Agora o poema não exige violência
pode contemplar o putrefato

Tampouco aceita
o olhar intacto
ante as formas
se dissolvendo
Alimentá-las
eis o primeiro 
pensamento da manhã

mesmo zelo dedicado
aos animais de estimação

esterilizadas de
memórias ou culpas
como instrumentos cirúrgicos
as lâminas ensinam: 

a indocilidade
emana das mãos


(Escrito no dia em que morreu David Bowie)

adeja

voo 
de rapina

a cabeça
sob
não lê
a palavra 
céu
com a mesma 
esperança

Novas traduções do poeta venezuelano Rafael Cadenas.



PRESENÇA

Rostos,
cores das roupas,
tons de pele. Tão imediato!
nos olhos
cansados de ser meus.

***
Deixe que os olhos
se recuperem de ti.

***

A única doutrina dos olhos
é ver.

***

O que ensinou a leitura aos olhos
apagou o paraíso.

***

O dono tem medo.
Os olhos somente a realidade.

***

Que pretensão: dar lições aos olhos,
mestres.

***
Se outro mundo nos é dado
deve ser este
desde uns olhos
que a diafaneidade há subjugado,
Plasmação ilegível,
herança escondida,
domínio hierático.

***

Os olhos não tem medo
nem são valentes.

***

Tenho olhos,
não pontos de vista.

***

Que faço
eu atrás dos olhos?

ABDICAÇÃO

Emudeço
em meio ao real,
e o real diz
com sua linguagem
o que eu guardo.
Necessita palavras
um rosto?
A flor
quer sons?
Pede vocábulos
o cão, a pedra, o fogo?
Não se expressam
somente por estar?
Imensas bocas
nos ensurdecem
sem serem ouvidas.
Calo. Não vou mais além de meus olhos.
Contido neste entorno.

PRESENCIA

Rostros,
colores de los trajes,
tonos de piel !tan inmediatos!
em los ojos
cansados de ser míos.

***
Deja que los ojos
se recuperen de ti.

***
La única doctrina de los ojos
es ver.

***
El que enseño a leer a los ojos
borró el paraíso.

***
El dueño tiene miedo.
Los ojos sólo tienen realidad.

***
Qué pretensión: darles lecciones a los ojos,
maestros.

***
Si outro mundo nos es dado
debe ser éste
desde unos ojos
que la diafanidad há subyugado,
Plasmación ilegible,
herencia escondida,
dominio hierático.

***
Los ojos no tienen miedo
ni son valientes.

***
Tengo ojos,
no puntos de vista.

***
?Qué hago
yo detrás de los ojos?

***
ABDICACIÓN

Enmudezco
en medio de lo real,
y lo real dice
con su lenguaje
lo que yo guardo.
?Necesita palabras
un rostro?
?La flor
quiere sonidos?
?Pide vocablos
el perro, la piedra, el fuego?
?No se expresan
con solo estar?
Inmensas bocas
nos ensordecen
sin ser oídas.
Callo. No voy más allá de mis ojos.
Me consta este alrededor.


Traduções de poemas do livro Memorial (1977), a partir da Antologia (1991).