I

Na tristeza extrema
compasso de lesma
ritmo de orquídea
regem o dia

II

Diário de um corpo
inamovível: o coração
como mecanismo
de relógio
não comunga 
o sono da casa

III

Os ponteiros
não se importam
com o pouco tempo
do homem de negócios
que fita
de dez
em dez minutos 
o rolex.






               I

Tarde amena no parque
joga-se pipoca aos pombos
Não perguntamo-nos hoje
sobre nosso amanhã

              II

Regeneramo-nos como
um rabo de lagartixa
Não sem poucas cicatrizes
Fotografia feita na praça João Pessoa, Araçatuba/SP, mais conhecida como praça do rock.
Mais uma traduçãozinha de poemas do grande Leopoldo María Panero.

Mutação de Bataille

Sonhei em tocar a tristeza viscosa do mundo
na desencantada borda de um pântano absurdo
sonhei uma água turva onde reencontraria
o caminho perdido de teu ânus profundo;

tenho sentido em minhas mãos um animal imundo
que na noite havia fugido de uma espantosa selva
selvagem como o vento, como o negro orifício
do teu corpo que me faz sonhar
tenho sonhado em minhas mãos um animal imundo
e soube que era o mal do qual morrerás
e o chamo rindo da dor do mundo.

     Uma luz demente, uma luz que faz dano
encontra somente em mim o cadáver do teu riso
do riso que livra tua longa nudez
e o vento descobre nossa morte, semelhante
a esse orifício imundo que eu quero beijar: resplendor
   imenso
então me iluminará
e tenho visto tua dor como uma caridade
irradiando na noite tua forma ampla e imensa
o grito da tumba que é tua infinitude
                                                     tenho visto tua dor
como uma caridade, como se alguém deixara suavemente
um olho na mão branca que o mendigo lhe estende.

Panero, Leopoldo María. Poesía completa (1970-2000). Ed.Visor Libros, 2006.



unhas roídas
até a carne

os dedos 
ardem
para que
cada toque
signifique

Todo o vivido
vívido.
Não olvido
nada, tudo
tátil:

tua língua
quente
em meu 
ouvido.

O vivido vívido
tipo cena
cinema paradiso:
a vida um filme
dentro do crânio
do menino.
Toda a extensão
da lâmina
é espelho
para luz branda
dessa clara
manhã

Exige-se 
gume exato
mãos exímias
para que o animal
não sofra

É simples, disse-me,
feito uma chama
que se estingue

Faz-se uma fissura
mínima (destece a carne)
a ponta da faca
busca o coração

Instantâneo como o tesão

O que assusta
os espectadores
e torna cruel
o espetáculo
é a lenta agonia
os espasmos
os olhos vidrados


A urina 
corrói as tíbias 
dos monumentos.

A brisa
assobia nos lábios
de bronze
das estátuas.

Alimento-me
de momentos
assim.

Louvo a tarde
em um parque
porque arde
quando lembro
que estive
expatriado
em terra de estio
e sede.

Somente na saudade
brotam ramos
verdes.
Apenas a poesia
não cede.





Creio
no crepúsculo
que nos
cobre

(nós que estamos
expostos à vida)

Aceito 
que um dia
eu não esteja
vivo para ver
a silhueta negra
dos prédios
contra a luz
que esmaece.

Não aceito
que enquanto
haja tempo,
hoje por exemplo,
eu não contemple
a poesia
anterior
à palavra.

O pôr-do-sol
opõe seu ritmo
à fome insone
das engrenagens
que movem
cifrões.
Estudo rítmico
sobre a normalidade
da infância

O cão
sepulto
no quintal
A criança
exuma
o cadáver:
couro seco
sobre ossos

Enterrávamos
em terrenos
baldios
os
animais
mortos

Só 
o
peixe
azul
fora
jogado
no lixo.
Cápsula
contra
o colapso

Pílula
que
previna
intempéries

Não há remédio
penso
sem pessimismo

Se tens a pele
espécie de página
sinta na própria
a escrita 
da vida

Fabiano grunhe
Riobaldo
fala pelos cotovelos
GH conversa
consigo mesma
Bernardo traduz
o discurso 
da lesma

Ofereço abrigo

ao abrir
a porta
Não verbalizo
o convite
Sirvo duas doses
de whisky
com gelo
O olho
fala por mim
que te acolho
em silêncio.