Roberto Bolaño considerava-se sobretudo poeta, embora tornado fenômeno editorial por suas obras em prosa que ,irônica ou sinceramente, disse ter escrito para sustentar a si e sua família. A poesia e os poetas, seus companheiros de infrarrealismo são personagens de suas narrativas. Lendo a obra Los perros románticos, me deparei com esse poema. A realidade é propícia para poemas provocativos, que fustiguem as feridas. A situação política em que todos estamos imersos, reflete o crescente conservadorismo: candidatos de direita eleitos com folga, o mundo masculino-machista impondo-se, a religião misturando seus valores com a política, semelhante a tempos sombrios, atitudes anti-democráticas, a população como ponto inicial dos cortes e congelamentos em prol da situação econômica. Regressos. 
   A poesia sabe cumprir seu papel. 
   A poesia tem voz indócil.
   É claro, a boa poesia, consciente da época, do que a circunda.
   Esse poema é um exemplo, muitas feridas são tocadas: tradição literária, verdades religiosas, o eu-lírico inquieto, carrega para a poesia o humano, sem sublimar, irônico. 







ERNESTO CARDENAL E EU.

Ia caminhando, suado e com o cabelo grudado
na cara
quando vi Ernesto Cardenal que vinha
na direção contrária
como saudação lhe disse:
Padre, no Reino dos Céus
que é o comunismo,
tem um lugar para os homossexuais?
Sim, disse ele.
E os masturbadores impenitentes?
Os escravos do sexo?
Os brincalhões do sexo?
Os sadomasoquistas, as putas, os fanáticos
por enemas,
os que já não podem mais, os que de verdade
já não podem mais?
E Cardenal disse sim.
Então levantei os olhos
e as nuvens pareciam
sorrisos de gatos levemente rosadas
e as árvores que costuravam a colina
(a colina que hemos de subir)
agitavam os ramos.
Árvores selvagens, como dizendo
algum dia, mais cedo que tarde, hás de vir
a meus braços viscosos, a meus braços sarmentosos,
a meus braço frios. A frieza vegetal
que te arrepiará os pelos. 



ERNESTO CARDENAL Y YO

Iba caminando, sudado y con el pelo pegado
en la cara
cuando vi a Ernesto Cardenal que venía
en dirección contraria
y a modo de saludo le dije:
Padre, en el Reino de los Cielos
que es el comunismo,
¿tienen un sitio los homosexuales?
Sí, dijo él.
¿Y los masturbadores impenitentes?
¿Los esclavos del sexo?
¿Los bromistas del sexo?
¿Los sadomasoquistas, las putas, los fanáticos
de los enemas,
los que ya no pueden más, los que de verdad
ya no pueden más?
Y Cardenal dijo sí.
Y yo levanté la vista
y las nubes parecían
sonrisas de gatos levemente rosadas
y los árboles que pespunteaban la colina
(la colina que hemos de subir)
agitaban las ramas.
Los árboles salvajes, como diciendo
algún día, más temprano que tarde, has de venir
a mis brazos gomosos, a mis brazos sarmentosos,
a mis brazos fríos. Una frialdad vegetal
que te erizará los pelos.


  Reportagem publicada no jornal Folha da Região de Araçatuba/SP no domingo 16/10/16, sobre a abertura do concurso de poesias Osmair Zanardi. 
lento percurso

tão leve
soletra o vazio
não posso escrevê-lo
queda livre

em concha a palma
da mão ampara
a pluma

excita pensá-la:
pássaro fragmentado

sobre os que amo
demoro meus olhos
castanho claros onde
a maré da memória
trouxe à margem
uma baleia morta
nadadeira direita
quase desmembrada
silencioso ventre 
branco acinzentado
sob o azul sem nuvens

os que amo mergulham
com escafandro o turvo
mar que avança e recua
a linha de espuma
inquietando naufrágios


colheu do chão 
uma casa de caracol 
desabitada

reconheceu nela
importância suficiente
para ser guardada
na antiga caixinha de joias

também colhida
do abandono