Cerveja preta, três vasos de violeta e um kalanchoe alaranjado no carrinho de compras da velhinha a minha frente na fila do supermercado. A espera poderia nos conduzir a conversar. Possibilidades diversas a deriva. Como para mim tudo é literatura, perguntaria se na pouca quietude que o dia nos reserva, convivera com Emma Bovary, Capitu ou Diadorim. Palavras podem nos oferecer a intimidade romanceada dos diários e autobiografias: percebi com melancolia o fluir do tempo quando a melanina dos pentelhos começou a se esvair. Eu lembraria do sopro impuro que ergueu por um átimo a saia da avó, revelando a resistente nódoa negra do sexo. Limitei-me a respeitar o ritmo da fila,  calcular mentalmente o valor da compra, demorando o olhar sobre seus olhos que as pálpebras modelavam num triângulo retângulo. Luminosidade intacta sob delicados óculos. A sabedoria dança ao redor como tentáculos ou os braços de shiva. Apêndices agregados ao corpo: saber que a presa é também predadora de alguma outra espécie e nem por isso trazem pânico ao passear livre pelas cidades ou deixam de excitar as crianças. 

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