Imagem: Miguel Sayago

O sorriso do papa nos preocupa


ninguém tem o direito de sorrir
em um mundo podre como este
salvo quem tenha pacto com o Diabo
V.S. deveria chorar oceanos
e arrancar os cabelos que lhe restam
ante as câmeras de televisão
em vez de sorrir a destra sinistra
como se no Chile não ocorrera nada
Suspeito senhoras e senhores!
V.S. deveria condenar
o ditador em vez de fazer vista grossa
V.S. deveria perguntar
sobre suas ovelhas desaparecidas
V.S. deveria pensar um pouquinho
foi para isso que os Cardeais
o coroaram Rei dos Judeus
não para farrear com o lobo
que ria da Santa Madre se quiser
porém não zombe de nós


LA SONRISA DEL PAPA NOS PREOCUPA

nadie tiene derecho a sonreír 
en un mundo podrido como éste 
salvo que tenga pacto con el Diablo 
S.S. debiera llorar a mares 
y mesarse los pelos que le quedan 
ante las cámaras de televisión 
en vez de sonreír a diestra y siniestra
como si en Chile no ocurriera nada
¡Sospechoso señoras y señores!
S.S. debiera condenar
al Dictador en vez de hacer la vista gorda
S.S. debiera preguntar
x sus ovejas desaparecidas
S.S. debiera pensar un poquito
fue para eso que los Cardenales 
lo coronaron Rey de los Judíos 
no para andar de farra con el lobo 
que se ría de la Santa Madre si le parece 
pero que no se burle de nosotros





margens mansas
o tempo abranda
o limite lâmina 
da página as formas
apazigua a fome
de ser faca

dedos percorrem ilesos
o fio gasto pelo uso
bordas borradas agora
apenas sussurram

mas,

resiste intacto
no papel opaco
o poema impresso
e o que há de vivo
movendo-se 
em suas vísceras
imagens indóceis

arraigado elo
une ao velho livro
ganho no dia
da despedida
é ainda
sempre será

signo aceso
do que
rompeu-se





Nó dos dedos
clamam à porta
até nódoas azuladas
colorirem as mãos

Hematomas lembram
sombras sobre a pele
o tom das tempestades

Mãos: 

Umas

Brancas e grossas
pesadamente pousadas
sobre a poltrona

Não afagam
Não gesticulam
nem me masturbam

Outras

Assemelham-se 
a leves folhas secas
descarnadas expondo
a arquitetura óssea
grossas veias verdes

Não ferem
Não saúdam
nem ateiam desejo
sobre meu corpo

Para ambas

Sugiro a possível redenção:
suturem meu supercílio





Os recentes 
retratos revelam
olhos naufragados
em si

Escuto o escuro
desse olhar

Habitas outro ritmo
Em torno uma teia sonora
Constelações confusas
em busca de um nome:

fragor de asas
lento velejar das nuvens
pétalas apenas
existindo quietas
unidas às outras
até que se desconstrua
a corola, o todo

Oito décadas de visões
fluíram
diante
até 

silêncio

Outrora devoravas
afoito
talvez a nudez
a cor das frutas
os olhos verdes

Sei que ainda
indagas a vida
o que há de invisível
sob o passar dos dias

Os olhos não funcionam
porque a engrenagem do corpo
naturalmente entra em colapso

Podes repetir isso mil vezes
o poema não aceita
não finge aquiescer

delicada caligrafia
sugere solenidade
linhas negras sobre
branca superfície 

desenham
a palavra 
noturna

sinônimos e 
outros signos
escritos por
todo esqueleto:

treva animais 
notívagos dama 
da noite
constelações
cegueira 
solidão lunar

inscritas
dentro de si
imagens afetivas
da palavra noite:

a convicção suicida
com que lançam-se
contra o lume
besouros e mariposas

não existimos imunes
à entregas apaixonadas