(Roberto Bolaño)



 A luz

Luz que vi nos amanheceres da Cidade do México,
Na avenida Revolução ou na Menino Perdido,
Fodida luz que ferrava as pálpebras e te fazia
Chorar e se esconder em algum daqueles ônibus
Enlouquecidos, aqueles micro-ônibus que te faziam viajar
Em círculos pelos subúrbios da cidade escura.
Luz que vi como uma solitária adaga levitando no
Altar dos sacrifícios da Capital, no ar
Cantado pelo Dr. Atl, no ar imundo que
Tentou capturar Mario Santiago. Ah, a fodida 
Luz. Como se fodesse consigo mesma. Como se
Chupasse sua própria vulva. E eu, o espectador
Insólito, não sabia fazer outra coisa que rir
Como um detetive adolescente perdido pelas ruas
Do México. Luz que avançava da noite ao dia
Igual uma girafa. Luz da orfandade encontrada
Na vazia e improvável imensidade das coisas.

LA LUZ

Luz que vi en los amaneceres de México D.F.,
En la Avenida Revolución o en Niño Perdido,
Jodida luz que dañaba los párpados y te hacía
Llorar y esconderte en algunos de aquellos buses
Enloquecidos, aquellos peseros que te hacían viajar
En círculos por los suburbios de la ciudad oscura.
Luz que vi como una sola daga levitando en
El altar de los sacrificios del D.F., el aire
Cantado por el Dr. Atl, el aire inmundo que que
Intentó atrapar a Mario Santiago. Ah, la jodida
Luz. Como si follara consigo misma. Como si
Se mamase su propia vulva. Y yo, el espectador
Insólito, no sabía hacer otra cosa que reír
Como un detective adolescente perdido en las calles
De México. Luz que avanzaba de la noche al día
Igual que una jirafa. Luz de la orfandad encontrada
En la vacía e improbable inmensidad de las cosas.
o lençol
enxuga o sêmen
que reflui
e chega às coxas
unido a outros
cheiros
e renomeado
unguento

o lençol
onde a noite
já distante
dos nossos
olhos acesos
perdura
acolhida pelos
vincos e dobras
é só para contar que
mesmo sem tempo
dei um jeitinho
de ir ao supermercado
comprar mais ameixas
estão caras mas
parecem doces e frescas
as outras apodreceram
esquecidas na geladeira
espero que as novas
tenham destino melhor
talvez possamos oferecê-las
aos vizinhos do andar de baixo
o william e o carlos
quando enfim devolvermos
aquele livro de poemas
subimos
é íngreme
o único 
acesso

quis percorrê-lo
a pé, porque
o tátil excita
e não por espécie
de expiação

mas seguimos
a 20 por hora
de carro até
o mirante 
do mosteiro

o prêmio do turista
ao fim do percurso
é autorretratar-se
com o mar ao fundo

dissonante, rejubilo
o espírito ao pensar
no prazer da língua
ao percorrer a delicada
pele de sal que recobre
as paredes de pedra
   Eis a tradução de dois poemas que Roberto Bolaño escreveu para seu filho Lautaro, assim que os li pensei em minhas filhas Letícia e Alice. São poemas que carregam mensagens que eu também registraria para elas, são poemas que traduzem a importância que os velhos poetas têm em minha vida e que são também, talvez, valiosa herança que deixarei a elas, meus amores, Letícia e Alice.


  Dois poemas para Lautaro Bolaño.


  Leia os velhos poetas.

  Leia os velhos poetas, meu filho
  e não te arrependerás
  Entre teia de aranhas e madeiras podres
  de barcos ancorados no Purgatório
  ali estão eles
  cantando!
  ridículos e heroicos!
  Os velhos poetas
  Palpitantes em suas oferendas
  Nômades entregues ao caminho e oferecidos
  ao Nada
  (mas eles não vivem no Nada
  senão nos Sonhos)
  Leia os velhos poetas
  cuide dos seus livros
  É um dos poucos conselhos
  que teu pai pode dar


  Biblioteca
  
  Livros que compro
  Entre as estranhas chuvas
  E o calor
  De 1992
  E que já li
  Ou nunca lerei
  Livros para que meu filho leia
  A biblioteca de Lautaro
  Que deverá resistir
  A outras chuvas
  Outros calores infernais
  - Assim, a ordem é esta:
  Resistam queridos livrinhos
  Atravessem os dias como cavaleiros medievais
  E cuidem do meu filho
  Nos anos vindouros



  Dos poemas para Lautaro Bolaño

  Lee a los viejos poetas

  Lee alos viejos poetas, hijo mío
  y no te arrepentirás
  Entre las telarañas y las maderas podridas
  de barcos varados en el Purgatorio
  allí están ellos
  !cantando!
  !ridículos y heroicos!
  Los viejos poetas
  Palpitantes en sus ofrendas
  Nómades abiertos en canal y ofrecidos
  a la Nada
  (pero ellos no viven en la Nada
  sino en los Sueños)
  Lee a los viejos poetas
  y cuida sus libros
  Es uno de los pocos consejos
  que te puede dar tu padre


  Biblioteca
  
  Libros que compro
  Entre las extrañas lluvias
  Y el calor
  De 1992
  Y que ya he leído
  O que nunca leeré
  Libros para que lea mi hijo
  La biblioteca de Lautaro
  Que deberá resistir
  Otras lluvias
  Y otros calores infernales
  - Así pues, la consigna es ésta:
  Resistid queridos libritos
  Atravesad los días como caballeros medievales
  Y cuidad de mi hijo
  En los años venideros



o ninho de pomba no parapeito
do terceiro andar expõe o tempo

que o apartamento permaneça
vazio e cada janela fechada
que as novas asas tenham tempo
necessário para compreender
os ensinamentos sobre o voo

é um desejo puro um desejo
sincero que eleva o prazer
erótico que as palavras trazem
ao que observa do prédio em frente
a uma espécie de oração
Poemas colagem




















as palmeiras de gonçalves
os palmares de oswald
discursam diferente
em cada poema
porque o poeta sabe
que os versos podem
contemplar ou convocar
gregório já sabia antes
mesmo de se aproximar
da costa angolana
que os sonetos
resultariam em degredo
mas por que recusar
ao poema o poder
de ser fora da lei?
manteve aceso
o inferno na língua




   Poema meu que tive a satisfação de ter selecionado para compor a edição temática Degredo, editada pela revista Gueto.



o mundo continua caduco
animal que tenta
se orientar pela audição
paro e o escuto

busco a palavra que
esculpa a dúvida
e me humanize
mesmo imerso
nesse hoje caduco:
por que muitos
se comprazem em ser
eunucos de um líder
com ideais fascistas?
Ideias não adormecidas
neles que agora se
reúnem em matilha
e livres uivam
pelas ruas
à luz do dia

no mundo caduco
não é absurdo
o que antes agredia 
a consciência
olhos passar ao lado
e já não ardem indignados

trazer aos versos
o hoje caduco
não é cantar
sim atear palavras
que o recusem
indaguem e
traduzam a
anormalidade

poemas que o tempo
não desgastou são
relidos como antídoto
porque o mundo
continua caduco




                             à Viviana

o amor aceso dentro
como a desesperada
esperança em um deus
não a lâmpada acesa
que expande luz pela sala
e pousa sobre a página
o amor aceso dentro
palavra incandescente
rediz os dias com a
voz indócil dos poemas
lidos e relidos sempre
com renovado tesão
reescrita ateada
contra ossos, asas, língua
o amor aceso dentro
e olhos menos noturnos
tornam a vida legível

soando sob
cada passo
folhas secas
fazem pisar
com delicadeza
ao poema importa
como os outros
animais veem
o mesmo poente
que vejo agora
e sinto lírico
declínio
não se
dilui
no azul:
insular
acolhe
olhos
à deriva

escre
vê-la
nuvem
não demove
a dúvida

nem sempre
há tempo
pra ler
o lento
percurso
ao vento

o poema
nos liberta
desse cálculo
   A melhor forma de homenagear o grande poeta Nicanor Parra, falecido hoje aos 103 anos, é republicar os poemas Autorretrato e A Víbora que traduzi e postei aqui no blog e um que escrevi em sua homenagem. A poesia permanece, grande Nicanor!

Autorretrato

Considerem rapazes 
Este sobretudo de frade mendicante:
Sou professor em uma escola obscura,
Perdi a voz ministrando aulas.
(Depois de tudo ou nada
Faço quarenta horas semanais).
O que diz a vocês minha cara esbofeteada?
Verdade que inspira lástima mirar-me!
O que sugerem estes sapatos católicos
Que envelheceram em vão.

Em matéria de olhos, a três metros
Não reconheço minha própria mãe.
O que me sucede? -Nada!
Os arruinei ministrando aulas:
A luz baça, o sol,
A venenosa lua miserável.
E tudo para que!
Para ganhar um pão imperdoável
Duro como a cara do burguês
Com cheiro e sabor de sangue.
Para que nascemos como homens
Se nos dão uma morte de animais!

Pelo excesso de trabalho, as vezes
Vejo formas estranhas flutuarem,
Ouço correrias loucas,
Risadas, conversações criminosas.
Observem estas mãos
As faces pálidas de cadáver, 
Os escassos cabelos que me restam.
Estas negras rugas infernais!
Sem embargo fui igual a vocês,
Jovem, pleno de belos ideais
Sonhei fundindo o cobre
E limando as faces do diamante.
Aqui me encontro hoje
Atrás dessa mesa desconfortável
Embrutecido pelo ritmo
Das quinhentas horas semanais.





A víbora.

Durante longos anos estive condenado a adorar uma mulher depreciável
Sacrificar-me por ela, sofrer humilhações e troças sem conta.
Trabalhar dia e noite para alimentá-la e vestir,
Levar a cabo alguns delitos, cometer algumas faltas,
À luz da lua realizar pequenos roubos,
Falsificações de documentos comprometedores,
Sob pena de cair em descrédito ante seus olhos fascinantes.
Em dias de mútua compreensão percorríamos os parques
E nos fotografávamos navegando uma lancha a motor,
Íamos a um bar com música ao vivo
Onde nos entregávamos a uma dança desenfreada
Que se prolongava até altas horas da madrugada.

Longos anos vivi prisioneiro dos encantos daquela mulher
Que costumava chegar ao meu escritório completamente nua
Executando as contorções mais difíceis de imaginar
Com o propósito de incorporar minha alma à sua órbita
E, sobretudo, para me extorquir até o último centavo
Proibia estritamente de me relacionar com minha família
Os amigos eram separados de mim mediante acusações difamadoras
Que a víbora publicava em um jornal de sua propriedade
Apaixonada até o delírio não me dava um instante de trégua,
Exigindo peremptoriamente que beijasse sua boca
E que respondesse prontamente a suas néscias perguntas
Várias delas referentes à eternidade e à vida futura
Temas que produziam em mim um lamentável estado de ânimo,
Zumbidos nos ouvidos, repetidas náuseas, desalentos prematuros
Que ela sabia aproveitar com o espírito prático que a caracterizava
Para se vestir rapidamente sem perda de tempo
E abandonar a sala me deixando com a cara no chão.

Esta situação se prolongou por mais de cinco anos.
Por um tempo vivemos juntos num quarto
Que dividíamos em um bairro de luxo perto do cemitério
(Algumas noites tivemos que interromper nossa lua de mel
para enfrentar as ratazanas que invadiam pela janela).
Levava a víbora um minucioso livro de contas
Onde anotava até o mínimo centavo que eu pedia emprestado;
Não me permitia usar a escova de dentes que eu mesmo a havia dado
E me acusava de ter arruinado sua juventude:
Lançando chamas pelos olhos me levava a comparecer perante o juiz
E pagar dentro do prazo estipulado parte da dívida
Pois ela necessitava do dinheiro para prosseguir seus estudos
Então tive que sair às ruas e viver da caridade alheia,
Dormir nos bancos das praças,
Onde fui encontrado moribundo muitas vezes pela polícia
Entre as primeiras folhas do outono.
Felizmente aquela situação não durou muito,
Porque certa vez em que me encontrava em uma praça também
Posando diante de uma câmera fotográfica
Umas deliciosas mãos femininas me vendaram súbito os olhos
Enquanto uma voz amorosa perguntava sabes quem é.
És tu meu amor, respondi com serenidade.
Anjo meu, disse ela nervosamente,
Permita que me sente em teus joelhos uma vez mais!
Então pude perceber que ela usava apenas uma pequena
                                               calcinha.
Foi um encontro memorável, ainda que pleno de notas dissonantes:
Me comprou um terreno, não distante do matadouro, exclamou,
Ali penso em construir uma espécie de pirâmide
Onde possamos passar os últimos anos de nossas vidas.
E já terminei meus estudos, me formei advogada,
Disponho de um bom capital;
Dediquemo-nos a um negócio produtivo, nós dois, meu amor, agregou,
Longe do mundo construamos nosso ninho.
Basta de sandices, repliquei, teus planos me inspiram desconfiança,
Lembra que de um momento a outro minha verdadeira mulher
Pode deixar-nos a todos na miséria mais espantosa.
Meus filhos já estão crescidos, o tempo transcorreu,
Me sinto profundamente esgotado, deixe-me repousar um instante,
Traga-me um pouco de água, mulher,
Consiga-me algo para comer, qualquer coisa,
Estou morto de fome,
Não posso trabalhar mais para ti,
Tudo está acabado entre nós.









A poesia permanecerá
antiga árvore
cujas raízes beberam
o dilúvio
águas que diluem
o sêmen dos deuses

O espírito do poeta
completa um século
imerso na arquitetura
de carne e ossos

A poesia permanece
frondosa árvore
cujas folhas traduzem
o que o vento ecoa
palavras próximas
ao ritmo puro

Ritmo puro:
ondas desfazendo-se
sobre as areias
de Isla Negra

O século é um ciclo
O círculo perfeito
não simboliza a poesia
Nicanor o atravessa
corpo lunar dividindo-se
entre luz e trevas
Que flua ininterrupto
com ritmo calmo
para apaziguar as formas
Flua com paciência
para polir as superfícies
Soe suave ao fluir
para sem temor
nos sentarmos 
às suas margens
e o olhar compreender
o movimento
                                                                 Para Viviana

A fotografia o fez observar luz e sombra
Os próprios passos o fizeram 
percorrer o claro e o escuro
Da poesia palavras atearam 
significados luminosos
e significados noturnos
A compreensão fora assim construída
pensa nomeá-la versos do recomeço
com impecável caligrafia escrevê-los
na brancura dos ossos
na porta da geladeira
para todos os dias reler
que há lirismo no preto e branco
ao retratar o cotidiano
mas precioso é buscar
de mãos dadas
apenas caminhos acesos
dentro do olho é presença
não com a consistência 
da pedra com a 
esperança da semente
o silêncio do caroço
a quietude do osso

como a palavra
que permanece
à espera no poeta

é presença que exala
convoca pássaros
de bico afilado 
propício para 
romper a casca
transpassar a polpa
dentro do olho
buscar a lembrança