sobre o parapeito
par de sapatos
ao sol morno da manhã

evoca a casinha de Brecht
expirando calma fumaça

mas sob cada
acorde cotidiano
soa a dissonância:
o embate 
o abismo
o silvo do s 
no verbo assassinar
rasteja entre as letras
à cobra opto pela
beleza da palavra serpente
a vida da palavra víbora
o súbito da palavra serpe

Importa ao poema
a analogia: a peçonha
espalha-se como noturno desejo
inocular é enlace extremo
os mortos adquirem 
temperatura reptícia

Obra de Ernest Pignon-Ernest. http://pignon-ernest.com

O percurso: sob 
luz ainda esmaecida
retomar a leitura
(café já coado
exalando ao lado
preto como não
são as noites)
ler ler e ler
até a claridade
fulgir sobre 
a pele dos móveis
Sem revoar da página 
ouvir a urina 
diluindo o silêncio
então a Vênus
não grandiloquente
como a de Botticelli
tampouco derruída
como a de Rimbaud
emerge desenvolta bela
à vontade no mundo
bermuda camiseta velhas
dedo dispersando
dos olhos os
resquícios
de pesadelos


do livro novo
a página fulge
sob a mínima
claridade
exala mesmo
distante quando
desejo apenas
lê-la e não
busco o olor
do livro novo
margem pouco
desgastada pelo
toque inscreve
delicada linha
ilegível não 
fosse o vermelho
que tinge 
a fissura
tão ínfima
nega à saliva
o sabor 
do sangue

três vigorosos
bater de asas
então paira
pousa ao lado
de outro gavião
no topo do prédio
sobre a velha
antena em forma
de espinha de peixe

olhos sóbrios 
demais para 
a teatral 
indagação
ao céu
acompanham
o voo

incrédulos
é adjetivo duro
para os olhos
que interrogam
mas também
contemplam


escreveu com 
inicial maiúscula
não se atreveu o suficiente
para conduzir ao extremo
a transgressão da linguagem
forma vociferando significado
pondero o impasse
há limites intransponíveis 
mas não para a poesia
o D maiúsculo é
impiedoso arremesso
lança aos olhos
o Deus pelo qual
rogam os homens
o verso soa
violenta voz
contra a paz
das palavras azuladas
pede o poema
que apuremos
os ouvidos
a alma faminta
os faz ganir
cães afoitos
sob as horas
noturnas






A tarde inteira
lendo histórias
em quadrinhos

Os super poderes
dos heróis não
os tornam mais
incríveis que
um passarinho

**********

O ciclope pedala
pela ciclovia

Ao redor
carros
rugem

Carrega na mochila
o livro de mitologia
grega emprestado
da biblioteca pública

Para o dever de casa
precisa fazer a sua
árvore genealógica

*******

A mãe
pendura
no varal
O sol
transforma
fantasma
em lençol



enreda-se
sobre si
com a beleza
que a ciência
dos nós de
marinheiro
não enleia

*
imagem no poema
evoca a hera
serpenteando
o pilar da varanda
erguida apenas
na lembrança da
criança que viu
a aranha mumificar insetos
oculta nessa selva

*
o pendurá-la no
trinco da porta
ou registro do chuveiro
é ato diferente
de fixar um quadro
na parede

*
o metal cromado
serve de espelho
a forma esférica
ao deformar
assim revela
a essência
de quem
espelha

*
a cor vermelha
entoa o ritmo
oposto ao do musgo
avançando sobre
a parede
embora haja
algo de noturno
no olor inscrito
entre as tramas
do tecido leve

*
mesmo esmaecido
o vermelho é voz
acesa entre a
cerâmica branca
como só no
poema é possível
sê-la em chamas

*
ela a despiu
inconsciente
da terrível
beleza do ato




Última ceia obra de Andy Warhol.

cristo pop
chagas em neon
apaga acende
cruz fluorescente
corpo de plástico 
translúcido
como as chamas
cristo pop
acende apaga
acende entre
as trevas da alma




o poema no meio

do livro espesso

poesias reunidas

eclode a exclamação

poemaço! Precisa

ser lido diariamente

(não como oração

mas devorado

é alimento)

para não 

o perder de vista

improvisa-se um

marcador de página

serve o retalho

um palmo mais ou menos

da fita de cetim azul celeste

o nó simples na ponta

impede que naufrague

então o poema pode

ser lido e relido

sequência digna

de analogias

com o pugilismo
lançado o cigarro
com ainda meio
centímetro de tabaco
queimando solitário
o fundo escuro do
asfalto ressalta
a fina fumaça branca
ascendendo em espiral
dedos o recolhem
com tamanho zelo
o verbo colher
traduz melhor
a beleza do ato
que antecede as
duas profundas
tragadas dadas
como se emergisse
em busca de fôlego
da metáfora mar
de gente onde
todos são anônimos
mas a indigência
é o anonimato mais
profundo até abissal
então encontrar uma
ponta de cigarro
é precioso
para quem
naufragará de novo
ao próximo passo
na metáfora
mar de gente

   Estão ainda deitados na penumbra. A luz do estacionamento esgueira-se pela mínima brecha da janela, impedindo a escuridão absoluta. No quarto, legível a silhueta dos móveis, noite verdadeira, treva, intransponível aos olhos. Ainda deitados, sentindo a respiração arrefecendo. O peito estendendo-se até o limite pela necessidade de ar, e descendo lentamente. A pele coberta pelas gotículas de suor, não escorriam, eram corolas afloradas sobre os poros. O tempo flui imperceptível.
   Ele mantém o olhar no teto, vendo sem querer desvendar as sombras projetadas, não importa a que desenho assemelham-se, gosta de compreendê-las como formas se dissolvendo, a rigidez dos ângulos domesticadas. Ela sente o sêmen refluir dentro do corpo. O líquido morno percorrendo o caminho inverso, lento, sem a urgência com que jorrara o mais fundo que pôde. Ele sente seu pau ainda intumescido, se levantasse da cama, agora estaria ainda ereto. Ai, vou tomar um banho. Ela exclama antes de beijá-lo no rosto, que permanece até ouvir o som da água o despertar da imobilidade.
   Na última vez que trepamos, dormi sem fazer a oração diária, como se a vida não pesasse sobre os pensamentos.

  
Espectros não arrastam os pés
Não calçam o par de all star surrado
Espectros não tem contato físico com a superfície

Enleado nos poemas que li piso o percurso
O estudo das texturas ensina onde 
o passo deve pousar suave 
onde pode se entregar mas nem por isso
o passante escreve publica enriquece entra
para a lista dos dez mais com um livro
de autoajuda sobre a arte de caminhar
Os sete dos alcoólicos dos narcóticos
é tanto passo certo prescrito: olhe
onde pisa e também o pisar em ovos
o passo em falso os passos da dança
o passo a passo das receitas dos manuais 
Cada um pise os próprios
É bom estar bem próximo 
ao rés do chão enleado 
aos poemas que li
consciente da estrutura óssea
muscular verbal que me conduz
pelas ruas pensando a palavra espectro
acolhendo seus ecos em outras
excitado pela indocilidade
da poesia
que não tem passo a passo

Reorganização sintática (e moral)

de algum modo imaculado
de modo algum imaculado

ao primeiro sopro
revoam em bando
pânico de asas
soa em uníssono
o uivo das árvores
os longos cabelos
que açoitam a tarde

olhos ocos
nenhum pássaro
restou sob
tuas pálpebras

         *

os mais velhos
transmitem os
significados
dos ventos
cada direção
sopra um
presságio

       *

na infância asmática
aprende-se que
a raiz grega 
da palavra alma 
é pneuma e também
significa respiração
a escola ensina
pneu é abreviatura
de pneumático
a sua maneira
o aluno compreende
quão foda é o poema 
pneumotórax
do manuel bandeira
ainda uma pneumonia
antes da adolescência
soprando trombone de vara
e sonhando a tuberculose
do século dezenove

              *

o vento varre
verdades erguidas
somo esse sopro
ao fôlego do poema



Os afogados
reúnem-se
em cardumes

Pela palavra
investigar a 
reação do corpo
à beleza desoladora


O primeiro esforço
é não ruir sobre si
como a onda um
passo além do ápice

Após noites seguidas
emergindo de 
pesadelos
com asfixia
Compreender
nadar para
longe do naufrágio
buscar a margem
é frágil salvação

Natural  a sede
por alguma remissão
Cogitar associar-se
aos que militam
pela preservação
das baleias
Fumar baseados
embarcado próximo
ao oceano ártico
com a tripulação babel
Registrar no
diário de bordo
Mishima Bashô
samurais de Kurosawa
mangakas underground
cerejeiras floridas
nem todo japonês
caça baleias

Pela palavra
conhecer a re
ação do corpo
à desoladora
beleza: ao
enredar-se
nos ossos
há que
ouvi-la
ecoar
os afogados



Palavras sobre a percepção do tempo
através da analogia com cavalos:

na tristeza o lento trote dos ponteiros
no ritmo oposto o galope rumoroso

o pudor herdado 
aconselha a 
desviar os olhos
do longo falo
que se estende 
arqueado ao
verde pasto

O fluir pole aos poucos
as matérias pétreas
Não o breve pouso
mantenha os olhos
sobre o corpo do poema
(meu bem, releia Ana C.
aqueles versos 
do filete de sangue
quando concordamos que
a relação visceral é
uma leitura possível)
Insista, Paz escreveu
a palavra no poema
oferece resistência
Aceite o duplo embate
com a linguagem
e consigo mesmo
Perceba: somos
a espinha dorsal
Contra o momento banal
a poesia incide 
a luz permanente
irmã daquela que exalta
o semblante dos santos
Compreenda: somos
a medula
de cada palavra
Então, a poesia
é também para que 
suportemos a noite
O fato de sermos lançados
na situação extrema
serve de forte 
argumento de defesa
O poema não condena


O desarraigado
exigiu mais esforço
que o previsto

Músculos tendões
ossos em uníssono
tensos ao extremo
esculpem a superfície
das mãos que agarram
Demonstram o quão 
difícil é desarraigar

Raízes emergem
embebidas em sangue
com vestígios de carne
gordura e pele

Fossem palatáveis
poderiam ser
lançadas aos cães
mas nem espécies
necrófilas
aproveitariam
esses restos
Flui reflui 
a linha
de formigas
entrando
e saindo
do pássaro
já desorbitado

No poema
sem pudor
nomeia-se
seiva
porque não há
palavra ou alimento
interdito

Ao sexo liquefeito
que embebe a língua
ou lança-se contra
o céu da boca
oferece a luminosa
palavra: sumo

Desenvolve-se assim:
o buraco aberto
com as próprias mãos
acolhe a imagem
lançada como semente
num átimo cresce
ramifica-se envolve
as vísceras sobrepõem-se
ao pulso asfixia todo
outro pensamento

Precisa ser escrito

Antes da semeadura:
o corpo não
detém o passo
somente vê
migalha de tempo
suficiente para
o pássaro morto
inscrever-se como
imagem

Após a colheita:
uma variação possível
exemplo de anti-milagre
o pássaro debate-se
como despertando
de um pesadelo
mesmo sem olhos
lança-se ao azul
As formigas incrédulas
tentam entender
a moral da fábula
A cigarra espectadora
fuma um cigarro oculta
no claro escuro das folhas
escarneia estridente:
agreguem ao vocabulário
a palavra regicídio



um automóvel vindo 
com o farol direito apagado
lembrou-me Camões

lentos pelo efeito do êxtase
dois anjos contemplaram
o naufrágio de Dinamene

inebriados agradeceram
ao céu soando nas águas
o Senhor seja louvado
pela jovem chinesa
dançando o belo
balé das algas



enfatizar
a recusa
sublinhá-la
para que não
reste dúvida

ferir o
silêncio
vociferar

proferir 
é pouco
não traduz

atear
hastear
a recusa

acompanha-nos
pelas ruas

intensa
mais que
lembrança
acesa

não revoa
homogênea
ao bando
de palavras

merece a grande metáfora:
coração em chamas

expor a recusa
lâmina ao sol

seja a recusa
presença política
voz somada
galos de joão cabral
amanhecendo
o poema


un coup de dés 
é sim imprevisível
Mallarmé, diferente 
do golpe político

podemos prever 
a democracia enferma
os frutos cedo apodrecidos
as mãos inábeis em cultivar
a terra que mesmo fértil
não produz o suficiente


a cura é a recusa de cada um
a vacina na palavra que não
vaticina o silêncio escreve 
esquiva e contragolpe
no poema lido
e sugerido aos amigos
na interrogação reflexão
no ato na desobediência
inclusive a civil

desculpe Mallarmé
continuas livro de cabeceira
mas o desejo de reler
Brecht está aceso


Posso arrancar os olhos agora sem recear a manhã seguinte (nenhum sentimento de culpa dilacerante, nem crise espiritual). Fechar os olhos não é suficiente, preciso arrancá-los e percorrer teu corpo com o olfato reescrito faro. Sem recear a manhã seguinte, quando não estejas para ser meus olhos. E chute móveis, apalpe paredes, mije no chão, queime as mãos ao coar café, não encontre o açúcar.
Delirar com violência. 
Ferir o ritmo monocórdico soando nossa foda.
É necessário arrancá-los. 
Sem recear o significado abissal da cegueira que compreenderei na manhã seguinte ao tatear o caos da estante em busca do livro, dentro o poema, única salvação possível para quando esmaece o desejo.
Rimbaud deu cores às vogais 
o poeta lê palavras acesas 
como nomes em neon
fast food azul drugstore verde 
o curto percurso 
pelas ruas noturnas
escreve o inverno
próximo aos ossos
hotel em vermelho 
lembra que 
és sempre 
estrangeiro
de alguma forma
não importa 
onde estejas
une saison en enfer
illuminations
estiveram bastante tempo
enquanto havia cabeceira 
em quartos provisórios
lençóis não recendem suor
há sempre um exemplar
do novo testamento 
de capa preta ou cinza







dentro do poema posso
nomeá-lo abscesso
o buraco aberto no chão
segundo a finalidade
para a qual foi cavado
convém chamá-lo cova
o monte de terra escura
acumulado nas margens
exala um cheiro fresco
arrefece  febre dos pés
a exaustão pesa nos braços
dizer que estás 
morto de cansaço
soa como humor negro
recolocada  a terra
uma grossa cicatriz
marca a superfície

o fio viscoso
seguiu unindo
um corpo ao outro

à distância de 
dois palmos
o desenlace fez
pousar sobre o lençol
sem ser absorvida
pelas tramas
a líquida linha

já de bruços
pensa: a palavra
ponte aproxima
as margens

nossa cidade
não é trans
passada por
rio algum

os suicidas
lançam-se
dos viadutos

tudo bem porque
diz-se que 
o trânsito
flui
estilhaçar é
uma forma
indócil de
multiplicação

a gota 
fragmenta-se
em outras

hoje a
primeira
caiu contra
um chão
diferente
de ontem

embora 
continuem
surdos à sutil
explosão

o mundo é outro

a gota des
construiu-se sobre
uma superfície
que ampara
de modo diverso
o passo dos homens

a questão é a seguinte:
compreenderão 
a chuva como 
bom augúrio 
ou dilúvio?


Não são, querido K,
palavras para uma carta
antes escrevo a mim mesmo 
sobre a ferida deste dia

Chove
Bom para continuar
no calor da cama
Mas estou de pé
bebo meu café com leite
e só, nem pão ou bolacha
Nada como pela manhã
(Será a causa da náusea
das primeiras horas?)
Amanheci numa democracia
sem presidente eleito pelo povo
Nos impuseram outro!
Compreende meu amigo?
Fizeram do nosso voto 
uma barata
e sem piedade 
pisaram






madame H. fora aguda em suas investigações
forjou a própria lâmina criou o próprio método
o instrumento pronto interrogou a consistência
partindo da superfície onde o desejo fulge
luz sobre águas inquietas
passo a passo mais incisiva
desvendando textura temperatura tons

madame H. anota tudo
tem o hábil olhar que lê
mínimo movimento em meio à selva
madame H. busca o nome
pulsando imperceptível
entre tantas palavras
a mim parecia impossível
o lume débil (menos que vagalume)
súbito raiar desabando 
as pálpebras incrédulas

madame H. impassível 
ante meu espanto
sustenta o cigarro 
queimando sereno 
como um incenso
no bojo da taça
o vinho não vibra
maciço concentrado em si
como o olhar de madame H.


Leopoldo María Panero: seis traduções dos Poemas do Manicômio de Mondragón.




Em minha alma apodrecida exala o fedor do  triunfo
a cavalgada do meu corpo em ruínas
onde minhas mãos para mostrar a vitória
se agarram ao poema e caem
e uma velha mostra o cu rosado
à vitória
             pálida do papel em chamas
nu, de joelhos, tremendo de frio
em atitude de triunfo.


***


Brindemos com champanhe ante o nada
salto de um saltimbanco sobre o aço escrito
onde a flor se desnuda e habita entre os homens
que dela se riem e desviam o olhar
sem saber ó ilusão que é também ao nada
que a lançam e a cada jogada
se estende a Morte diante do jogador nu
e anões jogam com cabeças humanas.


***


OS IMORTAIS

Na luta entre consciências algo caiu ao solo
o fragor de cristais alegrou a reunião.
Desde então habito entre os Imortais
onde um rei come diante do Anjo caído
e flores semelhantes à morte nos despetala
lança no jardim onde crescemos
temendo que nos chegue a recordação dos homens.


***


Chega do céu aos loucos somente uma luz que fere
se abriga em suas cabeças formando um ninho de serpentes
onde invocar o destino dos pássaros
cuja cabeça regem leis desconhecidas para o homem
e que governam também este trágico lupanar
onde almas se acariciam com o beijo da porca,
e a vida estremece nos lábios de uma flor
que o vento mais sedento empurrara sem cessar pelo solo
onde se resume o que é a vida do homem.


***


Do pó nasceu uma coisa.
E isto, cinzas do sapo, bronze do cadáver
é o mistério da rosa.


***

Debaixo de mim
jaz um homem
e o sêmen
sobre o cemitério
e um pelicano dissecado
nunca antes criado.
Caído o rosto
outra cara no espelho
um peixe sem olhos.
Sangue candente no espelho
sangue candente
no espelho
um peixe que come dias pre-
sentes sem rosto.


Traduções de Gustavo Petter, a partir da obra Poesía completa (1970-2000), Visor Libros.