Palavras sobre a percepção do tempo
através da analogia com cavalos:

na tristeza o lento trote dos ponteiros
no ritmo oposto o galope rumoroso

o pudor herdado 
aconselha a 
desviar os olhos
do longo falo
que se estende 
arqueado ao
verde pasto

O fluir pole aos poucos
as matérias pétreas
Não o breve pouso
mantenha os olhos
sobre o corpo do poema
(meu bem, releia Ana C.
aqueles versos 
do filete de sangue
quando concordamos que
a relação visceral é
uma leitura possível)
Insista, Paz escreveu
a palavra no poema
oferece resistência
Aceite o duplo embate
com a linguagem
e consigo mesmo
Perceba: somos
a espinha dorsal
Contra o momento banal
a poesia incide 
a luz permanente
irmã daquela que exalta
o semblante dos santos
Compreenda: somos
a medula
de cada palavra
Então, a poesia
é também para que 
suportemos a noite
O fato de sermos lançados
na situação extrema
serve de forte 
argumento de defesa
O poema não condena


O desarraigado
exigiu mais esforço
que o previsto

Músculos tendões
ossos em uníssono
tensos ao extremo
esculpem a superfície
das mãos que agarram
Demonstram o quão 
difícil é desarraigar

Raízes emergem
embebidas em sangue
com vestígios de carne
gordura e pele

Fossem palatáveis
poderiam ser
lançadas aos cães
mas nem espécies
necrófilas
aproveitariam
esses restos
Flui reflui 
a linha
de formigas
entrando
e saindo
do pássaro
já desorbitado

No poema
sem pudor
nomeia-se
seiva
porque não há
palavra ou alimento
interdito

Ao sexo liquefeito
que embebe a língua
ou lança-se contra
o céu da boca
oferece a luminosa
palavra: sumo

Desenvolve-se assim:
o buraco aberto
com as próprias mãos
acolhe a imagem
lançada como semente
num átimo cresce
ramifica-se envolve
as vísceras sobrepõem-se
ao pulso asfixia todo
outro pensamento

Precisa ser escrito

Antes da semeadura:
o corpo não
detém o passo
somente vê
migalha de tempo
suficiente para
o pássaro morto
inscrever-se como
imagem

Após a colheita:
uma variação possível
exemplo de anti-milagre
o pássaro debate-se
como despertando
de um pesadelo
mesmo sem olhos
lança-se ao azul
As formigas incrédulas
tentam entender
a moral da fábula
A cigarra espectadora
fuma um cigarro oculta
no claro escuro das folhas
escarneia estridente:
agreguem ao vocabulário
a palavra regicídio



um automóvel vindo 
com o farol direito apagado
lembrou-me Camões

lentos pelo efeito do êxtase
dois anjos contemplaram
o naufrágio de Dinamene

inebriados agradeceram
ao céu soando nas águas
o Senhor seja louvado
pela jovem chinesa
dançando o belo
balé das algas



enfatizar
a recusa
sublinhá-la
para que não
reste dúvida

ferir o
silêncio
vociferar

proferir 
é pouco
não traduz

atear
hastear
a recusa

acompanha-nos
pelas ruas

intensa
mais que
lembrança
acesa

não revoa
homogênea
ao bando
de palavras

merece a grande metáfora:
coração em chamas

expor a recusa
lâmina ao sol

seja a recusa
presença política
voz somada
galos de joão cabral
amanhecendo
o poema


un coup de dés 
é sim imprevisível
Mallarmé, diferente 
do golpe político

podemos prever 
a democracia enferma
os frutos cedo apodrecidos
as mãos inábeis em cultivar
a terra que mesmo fértil
não produz o suficiente


a cura é a recusa de cada um
a vacina na palavra que não
vaticina o silêncio escreve 
esquiva e contragolpe
no poema lido
e sugerido aos amigos
na interrogação reflexão
no ato na desobediência
inclusive a civil

desculpe Mallarmé
continuas livro de cabeceira
mas o desejo de reler
Brecht está aceso


Posso arrancar os olhos agora sem recear a manhã seguinte (nenhum sentimento de culpa dilacerante, nem crise espiritual). Fechar os olhos não é suficiente, preciso arrancá-los e percorrer teu corpo com o olfato reescrito faro. Sem recear a manhã seguinte, quando não estejas para ser meus olhos. E chute móveis, apalpe paredes, mije no chão, queime as mãos ao coar café, não encontre o açúcar.
Delirar com violência. 
Ferir o ritmo monocórdico soando nossa foda.
É necessário arrancá-los. 
Sem recear o significado abissal da cegueira que compreenderei na manhã seguinte ao tatear o caos da estante em busca do livro, dentro o poema, única salvação possível para quando esmaece o desejo.
Rimbaud deu cores às vogais 
o poeta lê palavras acesas 
como nomes em neon
fast food azul drugstore verde 
o curto percurso 
pelas ruas noturnas
escreve o inverno
próximo aos ossos
hotel em vermelho 
lembra que 
és sempre 
estrangeiro
de alguma forma
não importa 
onde estejas
une saison en enfer
illuminations
estiveram bastante tempo
enquanto havia cabeceira 
em quartos provisórios
lençóis não recendem suor
há sempre um exemplar
do novo testamento 
de capa preta ou cinza







dentro do poema posso
nomeá-lo abscesso
o buraco aberto no chão
segundo a finalidade
para a qual foi cavado
convém chamá-lo cova
o monte de terra escura
acumulado nas margens
exala um cheiro fresco
arrefece  febre dos pés
a exaustão pesa nos braços
dizer que estás 
morto de cansaço
soa como humor negro
recolocada  a terra
uma grossa cicatriz
marca a superfície

o fio viscoso
seguiu unindo
um corpo ao outro

à distância de 
dois palmos
o desenlace fez
pousar sobre o lençol
sem ser absorvida
pelas tramas
a líquida linha

já de bruços
pensa: a palavra
ponte aproxima
as margens

nossa cidade
não é trans
passada por
rio algum

os suicidas
lançam-se
dos viadutos

tudo bem porque
diz-se que 
o trânsito
flui
estilhaçar é
uma forma
indócil de
multiplicação

a gota 
fragmenta-se
em outras

hoje a
primeira
caiu contra
um chão
diferente
de ontem

embora 
continuem
surdos à sutil
explosão

o mundo é outro

a gota des
construiu-se sobre
uma superfície
que ampara
de modo diverso
o passo dos homens

a questão é a seguinte:
compreenderão 
a chuva como 
bom augúrio 
ou dilúvio?


Não são, querido K,
palavras para uma carta
antes escrevo a mim mesmo 
sobre a ferida deste dia

Chove
Bom para continuar
no calor da cama
Mas estou de pé
bebo meu café com leite
e só, nem pão ou bolacha
Nada como pela manhã
(Será a causa da náusea
das primeiras horas?)
Amanheci numa democracia
sem presidente eleito pelo povo
Nos impuseram outro!
Compreende meu amigo?
Fizeram do nosso voto 
uma barata
e sem piedade 
pisaram






madame H. fora aguda em suas investigações
forjou a própria lâmina criou o próprio método
o instrumento pronto interrogou a consistência
partindo da superfície onde o desejo fulge
luz sobre águas inquietas
passo a passo mais incisiva
desvendando textura temperatura tons

madame H. anota tudo
tem o hábil olhar que lê
mínimo movimento em meio à selva
madame H. busca o nome
pulsando imperceptível
entre tantas palavras
a mim parecia impossível
o lume débil (menos que vagalume)
súbito raiar desabando 
as pálpebras incrédulas

madame H. impassível 
ante meu espanto
sustenta o cigarro 
queimando sereno 
como um incenso
no bojo da taça
o vinho não vibra
maciço concentrado em si
como o olhar de madame H.


Leopoldo María Panero: seis traduções dos Poemas do Manicômio de Mondragón.




Em minha alma apodrecida exala o fedor do  triunfo
a cavalgada do meu corpo em ruínas
onde minhas mãos para mostrar a vitória
se agarram ao poema e caem
e uma velha mostra o cu rosado
à vitória
             pálida do papel em chamas
nu, de joelhos, tremendo de frio
em atitude de triunfo.


***


Brindemos com champanhe ante o nada
salto de um saltimbanco sobre o aço escrito
onde a flor se desnuda e habita entre os homens
que dela se riem e desviam o olhar
sem saber ó ilusão que é também ao nada
que a lançam e a cada jogada
se estende a Morte diante do jogador nu
e anões jogam com cabeças humanas.


***


OS IMORTAIS

Na luta entre consciências algo caiu ao solo
o fragor de cristais alegrou a reunião.
Desde então habito entre os Imortais
onde um rei come diante do Anjo caído
e flores semelhantes à morte nos despetala
lança no jardim onde crescemos
temendo que nos chegue a recordação dos homens.


***


Chega do céu aos loucos somente uma luz que fere
se abriga em suas cabeças formando um ninho de serpentes
onde invocar o destino dos pássaros
cuja cabeça regem leis desconhecidas para o homem
e que governam também este trágico lupanar
onde almas se acariciam com o beijo da porca,
e a vida estremece nos lábios de uma flor
que o vento mais sedento empurrara sem cessar pelo solo
onde se resume o que é a vida do homem.


***


Do pó nasceu uma coisa.
E isto, cinzas do sapo, bronze do cadáver
é o mistério da rosa.


***

Debaixo de mim
jaz um homem
e o sêmen
sobre o cemitério
e um pelicano dissecado
nunca antes criado.
Caído o rosto
outra cara no espelho
um peixe sem olhos.
Sangue candente no espelho
sangue candente
no espelho
um peixe que come dias pre-
sentes sem rosto.


Traduções de Gustavo Petter, a partir da obra Poesía completa (1970-2000), Visor Libros.