O som do trompete alça de um apartamento próximo. Voo solitário entre os prédios. Alguém estuda a partitura. A breve sequência soa, silencia, repete-se. Meus ouvidos inaptos não reconhecerão o tempo impecável, a perfeita execução. Se Louis ou Chet. Lenta lâmina sobre o silêncio. Importa-me porque fere o fim de tarde. O som do trompete. Ouço-o ave noturna, outro ritmo, oposto aos pássaros que ateiam manhãs. 

Roberto Bolaño.



Ninguém te manda cartas agora     Debaixo do farol
no entardecer                 Os lábios partidos pelo vento
Longe fazem a revolução                      Um gato
dorme entre teus braços
As vezes és imensamente feliz



Nadie te manda cartas ahora        Debajo del faro
en el atardecer      Los labios partidos por el viento
Hacia el Este hacen la revolución            Un gato
duerme entre tus brazos      
A veces eres inmensamente feliz



Poema da obra La Universidad Desconocida, traduzido por Gustavo Petter.

dias há de desmemória
lê-se o azul intacto da superfície
outros a maré avança com violência
a linha de espuma contra a orla

dias há de ser areia sob o pesado pugilato da memória

Roberto Bolaño.

Colinas sombreadas mais além dos teus sonhos.
Os castelos que sonha o vagabundo.
Morrer ao fim de um dia qualquer.
Impossível escapar da violência.
Impossível pensar em outra coisa.
Fracos senhores louvam poesia e armas.
Castelos e pássaros de outra imaginação.
O que ainda não tem forma me protegerá.


Colinas sombreadas más allá de tus sueños.
Los castillos que sueña el vagabundo.
Morir al final de un día cualquiera.
Imposible escapar de la violencia.
Imposible pensar en otra cosa.
Flacos señores alaban poesía y armas.
Castillos y pájaros de otra imaginación.
Lo que aún no tiene forma me protegerá.


Roberto Bolaño em La Universidad Desconocida. 




Ritmos.

               Duas palavras unem-se pela semelhança sonora. O ritmo é imã, atrai outra. Juntas constroem a imagem inóspita. Eclosão, núcleo, ponto nevrálgico do possível poema. Sempre assim, desatento, o pensamento passeando pelas margens, o periférico sendo colhido, por exemplo, a velocidade das pálpebras encobrindo e descobrindo o verniz dos olhos castanhos claros, fixos onde os meus deveriam estar, a mulher vestida com elegância, sobriamente maquiada, falando sobre as qualidades do profissional ideal. Que postura corporal, disponibilidade, capacidade de decisão, maneira de vestir-se diferencia o bom do excelente.
   A plateia composta por funcionários recém contratados, todos captando cada palavra, complementada, como no teatro, pela expressão facial da palestrante.
   Sentado quase ao fundo da sala, compreendendo-me mais um poeta em tempo integral que membro ou colaborador, eufemismos pronunciados para que ninguém sinta-se subalterno. Ouço o compasso hipnótico dos ventiladores de teto, busco versos para simbolizar o giro, o sopro. Percebi pelo desritmo dos olhos, revoada uníssona para a esquerda, que algo aconteceu. Acabara de transpassar a porta uma senhorinha, ombros estreitos sob o singelo casaco de lã lilás. O silêncio do público e dos que estão à frente coordenando as atividades, expressam a importância da sua presença. Avança a passos lentos olhando ao redor. Seu corpo transmite fragilidade, não condiz com as características pré-estabelecidas em nosso imaginário, de quem gere há décadas a bem sucedida empresa da qual seremos, em breve, subordinados. Sinto-me ridículo por pensar de forma tão vulgar, homogênea, seguindo a manada.
   Acompanho seu percurso até a cadeira colocada impecavelmente ao centro da longa mesa, ornada com toalhas brancas e um vaso de flores em cada extremo. Com um gesto delicado a senhora recusa o convite para sentar-se, prefere permanecer em pé, falar olhando para todos. Nesse momento senti o impacto, a voz destoa da aparência débil, soa forte, acolhe os ouvidos, cativa. Percebo seu olhar demorar sobre o dos ouvintes, borboleta alternando o voo suave de corola a corola.
   O som intacto com que proclama o discurso de boas vindas, só não disfarça as mãos trêmulas, sobretudo a esquerda, denunciando a doença. Entrelaça os dedos tentando contê-los, disfarçar o movimento involuntário. Gesto vão. Leio o tremor, sem a vulgar piedade. A imagino sustentando um pesado livro em horas insones. Banhando a pálida pele, o tato indagando a desarmonia entre o pensamento e o corpo.
   Quero sentir a temperatura das mãos descarnadas. Pousem sobre mim o ritmo enfermo. Tenho prazer em intuir nesse desejo uma espécie de crime.









orna com formas amenas
o silêncio da antessala
nas folhas rajadas vejo
o dorso de um tigre verde
adormecido no fundo da jaula
(hoje preciso reler Der Panther)

quem quererá os caninos
da verdade transpassando
a carne até o osso?

palavra despida
sem a convulsa
dança da náusea

prefiro o poema 
que ao lacerar lê
pétalas liquefeitas
louva a iminência do jardim
sob o livre velejar das lâminas

sob o peso da poesia
a experiência permanece



   Imagens do meu poema que integra a exposição POESIA AGORA no Museu da Língua Portuguesa e da ala Livros onde está exposto. 








Créditos das imagens para Simone Castro que fez a gentileza de registrá-las. 

sabe dos que se salvaram:
permaneceram na superfície

do avesso sabe o balé das algas
os peixes de olhos sempre acesos
movendo-se sem ferir o silêncio

resta na pele que emerge
sal e cheiro de mar

inscrito no homem
o pugilismo das marés

crianças desenham crânios
sobre ossos cruzados

porque a palavra
permanece indócil
a escrita parece à deriva
não ao acaso o fluxo
conduz por signos marinhos

o poema impele: submergir 
sem escafandro
confiar no 
próprio fôlego

ensina o extremo: transformar
mergulho em naufrágio



no avesso
algo envolto
não traduzido por:
alma memórias vísceras
vida invisível no bojo
do corpo que envolve
existe incorpóreo
só presumível pelo 
peso expresso
nos passos lentos
daquele que porta
desoladora mudez
de não poder
esculpir cuspir
ou ao menos
auscultar o oculto
embora pulse
e busque forma
atreva-se à travessia
entranhe-se entre 
palavras estranhas
aos significados
insuficientes para
devassa-los

no avesso
algo envolto
segue sem nome
sendo sobretudo
presença 










pelo fôlego
evocar o fogo
ao fabricar o vento

embora seja o sopro
ambíguo por poder
extingui-lo existe
em si a certeza
soprar com o coração
como sopra Coltrane
alimenta a frágil fagulha

ascendê-la a incêndio
escrevê-la contra as trevas
assim atear claridade e calor
sobre a noite que persiste
não cessa acesa ao avesso