Memória (Sprache der vögel), obra de Anselm Kiefer, 1989.


movimento fotográfico
lençóis derramados pela cama
as impurezas da superfície branca
não se resumem ao esperma que resta
vislumbro outras máculas 
marcas sob a pele em 
quartos baratos não
há camareira ou café da manhã
quartos baratos vivem 
um dia após o outro
entre baratas e desmemória
sejam luxuosos ou miseráveis
quartos de hotéis são amnésia

faz muito tempo não adormeço
em lugares vazios de lembranças



Yo bromeo nombrándole
Federico la loca
él lanza contra mi cabeza
un pesado libro de poemas,
no recuerdo se del quevedo
góngora o san juan
Los ebrios sonidos
de nuestras risas heren
la piel lunar de fuente vaqueros
De la bucólica paisaje
tus manos jóvenes
cogen signos de la muerte
y del cristo el mismo
hombredios que respira
en agónico ritmo
dentro de mi cuerpo

Federico reprueba mi
incredulidad diciéndome
hay oculto en cada poema
no un poeta o un hombre
pero una multitud que
orina, sangra y tiene deseos
tan urgentes cómo el hambre

Federico teje la analogía:
para mantenerte hueco
asesinarás un toro
por día en la arena 
de tu cráneo es mejor 
creer en la duda
que en la nada





OBS: somente os dois primeiros versos seriam em espanhol, misturaria as línguas, mas segui naturalmente o ritmo que as palavras sugeriram, construindo assim o poema todo no idioma de Federico Garcia Lorca.




Tantas pessoas evangelizando na manhã de sábado.

Atravesso o centro da cidade com a inseparável camiseta do motörhead, capa do álbum bastards. Barba de um mês por fazer.

Caminhamos no mesmo rumo por acaso.

Percebo.

A garota ruiva, aparentando uns vinte anos, hesita um instante. Enfim, estende o braço e oferece um folheto escrito "jesus te ama" sobre a imagem de uma flor e um versículo que não li.

Ela diz: - Deus te abençoe!
-Muito obrigado. Respondo.

Prosseguimos nossos caminhos. Não olho para trás. Creio que ela também não.

Talvez siga iluminada pela analogia da entrega como semeadura. Sigo pensando "meu bem, sei que também carregas alguma espécie de inferno".
Chorou: tons
rútilos tingem
ao redor da íris
cores colhidas
antigo crepúsculo
contemplado com
os olhos intactos
o
insólito
sólido 
aos olhos

sol

lido
tão
quente
quanto
a febre

não feche

as pálpebras
ao sólido
insólito

só 


espaço
in
comunicável
entre
a alma 
os ossos
sente
o insólito
tátil



Pesada consciência da espera

corredor mal iluminado
a claridade da manhã
perde-se pelo labirinto
lâmpadas elétricas estão
distantes como estrelas

os olhos fundos
tornam-se abissais
na penumbra

Pesada consciência da espera

o pensador de Rodin
mão esculpida
sob a mandíbula
belos músculos 
imersos em luz
e sombras

Sem esperanças: a espera

um homem com 
a mão no queixo
finos e frágeis dedos 
unhas roídas até a carne

Em estado 
bruto: pedra
incomunicável

Pesada consciência da espera


Tão brancas
luzes iludem
sol dissolve
silhuetas se fundem

percurso inexato
olhos semicerrados
visão baça

Tão brancas
luzes iludem
insetos

Tão brancas
luzes se 
atrevem : escrevem
sobre a treva




No corpo
da praça
o pombo
negro como
um corvo
se curva
sobre alguns
farelos

Cheiro de maconha
vodca com refrigerante
beijos adolescentes
crianças elétricas

um único livro aberto

é possível 
que outro 
crânio
esteja
construindo
um poema

Vejo o pombo
negro como
um corvo:
certo dia Edgar
delirou sozinho
numa rua vazia
de Baltimore

Quem pensaria isso
entre o movimento
pendular do balanço
e bicicletas cor de rosa?

Aquele que lê
o único livro
aberto no corpo
da praça
Aquele que insiste
em imagens do tipo:
como prenúncio
calaram-se todos
os pássaros


Imagem: Nan Goldin

penso num galho seco
penso que o outono
desnuda as árvores
penso nisso tudo
enquanto vejo: 
corpo magro se curva
arqueia-se para acender
o cigarro e a concha
da mão protege a chama
da brisa que sopra contra
a vitrine compõe uma
imagem dupla
já não lembro
qual das duas
contemplo ou 
se apenas 
busco 
com os olhos
os livros
atrás do vidro
servindo de 
efêmero espelho 
para a mulher
que aparenta
ser mais velha
do que real
mente 
é

Tempestade liberta
a noite da inércia
de olhar fixo
para o nada

Vendaval tormenta
temporal palavras
que oferecem
estranho conforto

Faz parte do corpo
a janela aberta

Relâmpagos doam
o breve incêndio
dos sonhos que
se vão abruptos

Faz parte do corpo
o chamamento: me
veja de bem perto. 
Pergunte-me porquê
ao pousar
as pupilas
são insetos
que elegem
a pele
leito de morte
ideal


Palavra alguma
aflora fora
do corpo
ar 
árido
nega a sonora
existência 
das aves

Palavra: verbo
Vê-se surgir
exposto aos rugidos
Voz: insurge-se
contra sólidos
caninos

Solidão: não
podemos perpetuar
o silêncio

Dentes e mandíbula
o rumor com que mordo
a maçã
ecoa no crânio
a manhã
esculpida por pássaros
Ela tem alzheimer
Ela tem os olhos
esculpidos em mármore
Ela melhorou um pouco
ao conviver com outros
no asilo, disseram
Ela não tem 
memória recente
guardará muito bem
os meus segredos
no definitivo esquecimento:

Foram só dois ou três 
segundos, lhe contei
Não contei mas haviam
dezenas de pílulas
pensei em engoli-las
todas nesses três ou dois 
segundos, mas depois
tomei apenas uma para dor
de cabeça embora nem
doesse tanto mas
queria algo mais
dissolvendo-se dentro
do corpo
e não só
o sentido
das coisas
O caroço: arremessei-o
pela sacada no vazio
que separa o quarto
andar do estacionamento

A saliva guarda o doce 
sabor da ameixa

Houve um homem
que jamais se queixava
à deriva no fluxo
Mãos trêmulas
ao escrever 
a palavra leme

A poesia precisa de lema
ou imagens libertárias?

Ou basta a presença
do eu-lírico que será 
fatalmente lido
como alter ego do poeta
que bebera uma garrafa de vinho
e agora arremessa o caroço 
de ameixa sem ao menos
levantar-se do chão da sala
ou fechar o livro
de poesias 
já passada a meia-noite
Eis o que resta: sobra o insosso
ossos no canto do prato
A carne mal passada
tinge a saliva de um
vermelho esmaecido
Já os tomates
atingem o ápice
próximo ao podre

Ritual diário: ler as cores
intensas ao entardecer

Com carinho enviarei o livro
novo, intacto. Pronto 
para acolher a história 
do teu toque o óleo 
da pele, o peso
dos dedos ao folheá-lo

Os olhos passarão 
sobre como a sombra 
de um pássaro

Poderá o corpo
receber o novo
amor como
página em branco?

Valiosa é a dúvida
e não a resposta

Os pratos por lavar 
na pia o ato pendente 
um fato insignificante 
perante a busca

Ver as vértebras
doloroso dorso
escarpado

não desloca-se 
do ponto 
X ao Y
não há flanerie
baudelairiana

Aquele cão 
um ritmo rumo 
ao silêncio

Metáfora do não dito
para traduzir-se
suplica asilo 
à poesia


I

Porta fechada. Não
a porta fechada: ato
impessoal de mecanismos
constituídos por chave
maçaneta nomeando
o estar dentro ou fora

A porta fechada. Não
o fato descarnado
assomando-se ao ossuário
cotidiano. Não imagem 
onde equivalem os signos
impermanência e cicatriz

Sim
a porta 
desoladoramente
fechada

Sim
os olhos
inconsoláveis
leem a aparente
eternidade da porta 
fechada 

II

Presença indevassável
Silêncio tátil
Superfície sóbria
A cor fria

A porta fechada

Fora: 
a mão
nó dos dedos
nódoas azuladas
hematomas imobilidade

Dentro:
o apartamento
vazio
suas
memórias


Há noite em nós:
a noite e seus nós
ilegíveis.

Vertigens
de um dia longo:
ver os tigres
estenderem o dorso
compondo o crepúsculo.

Ouço rangerem os ossos.
Avançam com lentos passos
de encontro à noite.

A noite
em nós
um nó:
sombras
sobrepostas.


O homem estranho
acolheu a dúvida
porquê abrigar-se
da chuva?

No meio da rua
o homem estranho
contempla as nuvens
como se fossem a nave
de inatingível catedral

Ratos em pânico
desviam do estranho
homem em busca
de marquises ou
o interior de cafeterias
onde manterem-se secos

Os mendigos encontram abrigo
acendem cigarros amassados
Os cristãos encontram abrigo
e dão graças a deus por isso
- É bom a chuva lavar as ruas!
Boceja a boca vazia de beijos
- A previsão do tempo acertou!
Respondem lábios onde o sumo
do sexo resume-se à memória

Ninguém está a salvo
A chuva do fim de tarde
contra a vidraça dos olhos
Ouvem o rumor torrencial
língua lasciva no ouvido
lambendo o lóbulo
Ninguém está a salvo

O homem estranho
veste o líquido manto
Profere palavras
incomunicáveis ao lume
débil dos homens:

- Você ainda quer mudar o mundo?
- Você julga ridícula a poesia?
- Você sonha uma foda rápida no mictório?
-  Todos vocês conhecem a expressão "cape diem",
mas já leram Horácio?

Ninguém está a salvo

Vislumbremos a verdade
entre nossos ossos
Reconheçamos nossa miséria
Sem máscaras seremos
verdadeiros amigos

Imagens metáforas
a carne das palavras
elevam a inconsolável
lucidez ao ápice
da linguagem

A música soa suave
ao acariciar a superfície
mas permita à poesia
anunciar o ritmo subterrâneo

Whitman ofereceu a mão
Lorca aceitou o convite
se amaram
sem medo
sobre o leito
de folhas





Olhar náufrago
refém do fluxo
remar com os próprios braços
é um gesto inútil

Mas o discurso ininterrupto
reconduz os olhos à orla
Lábios rosas prosseguem o monólogo:

- Sabe quando tudo está equilibrado, mas seu coração inquieta-se,
escolhe o caminho mais difícil e você não quer lutar contra esse impulso?
Pressinto uma espécie de apocalipse próximo!

O corpo de onde alçaram as pupilas náufragas,
assente, monossilábico:

-Sim.

Ao lado, 
garrafas long neck 
recendem à cerveja.
A maré cheia 
cresce em rumor
aproxima dos pés 
a linha de espuma
O comportamento das cápsulas
imersas nos sucos gástricos
lentamente se dissolvendo

desejara a rapidez efervescente
do anti-ácido num copo de água

Para um célere alívio
o ideal seriam drogas
intravenosas

Áspera consciência da espera

Quanto tempo até
diluírem-se tantas?
Interroga Alejandra

Encomendara ao taxidermista
a alma vazia de vísceras
modelada com um fixo
semi-sorriso estilo monalisa
O homem virá de táxi

Áspera consciência da espera

O corpo busca
signos vegetais
que traduzam 
a imobilidade

Se não há dor
impedindo ações
há a dúvida
há interrogações

o porquê disso?
qual o sentido?

A febre revela
uma possível resposta:
houvesse outros olhos perto
guardados em segredo
por pálpebras coloridas
órbitas fechadas em si
sentindo a alma
de um violoncelo

houvesse uma presença
de bruços na penumbra
a linha irregular
das vértebras desenhando
a trama delicada
entre luz e sombra

Haveria movimento

Interrogo o luto:
legítimo esculpi-lo
ou aceder ao desejo
de quedar mudo

Entre palavras busco
traduzir o negrume
denso mas não inexorável:
débil lume escreve
a palavra esperança

tão incomunicável
a olhos lúcidos
quanto a imagem
do luto

Interrogo-me: luto
com a matéria bruta
e a esculpo ou
acedo à inércia
contemplando a ideia
amorfa?

A dúvida torna-se
essência do poema
o luto permanece
uma palavra negra