À deriva na branca monocromia

deslizam os olhos 
por todos os cantos
em busca de pouso 
para os pássaros noturnos

Desespera-se o espírito
que segue solitário
pelo exangue deserto

Desoladora ausência
de palavras que ofereçam
a sombra de sua negra silhueta

Não escolhi conduzir meus ossos
sob a iminência das tempestades

Nenhum pai dedicaria aos filhos
a difícil escrita das lâminas

Mas em cartas suicidas
são as palavras
sobretudo carne

Impossível compô-las
amenas como as manhãs
Anotações de um estrangeiro:

Os ponteiros extáticos
na estação rodoviária
sustentam o aceno
em eterna despedida


O trem cargueiro
impõem seu compasso
à manhã da metrópole
Penso em Jack Kerouac
e nos trilhos como cicatrizes


No pátio da universidade
duas horas contemplando
a dança das árvores
A alma compreende o vento
com os olhos fechados


Atmosfera oleosa da pastelaria
a solícita atendente oriental
traz um suco de laranja
Quis contar sobre a bela capa vermelha
da antologia de poesia chinesa que li


Ao crepúsculo os personagens do subsolo
exibem no banheiro público
as tatuagens opacas e o pau duro


Súbito percebo que hoje
não mirei o céu
uma única vez


Ponteiros fixos às cinco horas em ponto
de uma tarde esquecida
Lembram-me o pranto de García Lorca


Relógio imóvel da estação rodoviária
Serias ingênuo em insurgir-se contra o tempo
Traduzo tua recusa
como busca por serenidade
Estás tão tranquilo
sem os ruídos das engrenagens
roendo-te as vísceras






Poema de Rafael Cadenas

Imagem: Ricardo Armas  em http://el-placard.blogspot.com.br/2012/04/poemas-de-rafael-cadenas.html


Derrota

Eu que nunca tive um emprego

que ante todo adversário me senti débil
que perdi os melhores troféus para a vida
que apenas chego em um lugar já quero partir (crendo que mudar é uma solução)
que sou subestimado e recusado pelos mais hábeis
que me seguro nas paredes para não cair
que sou motivo de piada para mim mesmo por crer
que meu pai seria eterno
que sou humilhado por professores de literatura
que um dia perguntei em que poderia ajudar e a resposta foi uma gargalhada
que não poderei nunca ter um lar, nem ser brilhante ou triunfar na vida
que sou abandonado pelas pessoas por ser tão calado
que sinto vergonha por atos que não pratiquei
que falta pouco para que eu corra louco pelas ruas
que perdi o equilíbrio que nunca tive
que me tornei piada para muita gente por viver no limbo
que não encontrarei nunca quem me suporte
que fui preterido por pessoas mais miseráveis que eu
que seguirei a vida toda assim e ano que vem serei muitas vezes mais ridicularizado por minha
boba ambição
que estou cansado de receber conselhos de outros mais entorpecidos que eu (Ex: você é muito preguiçoso, tenha ânimo, desperte)
que nunca poderei viajar para a Índia
que recebo favores sem dar nada em troca
que percorro a cidade de um lado a outro como uma pluma
que me deixo levar pelos outros
que não tenho personalidade nem quero tê-la
que todo dia calo minha rebelião
que não lutei nas guerrilhas
que não fiz nada por meu povo
que não sou das FALN* e me desespero por todas essas coisas e por outras impossíveis de enumerar
que não posso sair de minha prisão
que sou qualificado em todo canto como inútil
que na realidade não pude casar nem ir para Paris nem ter um dia sereno
que sempre babo sobre minha história
que sou idiota e mais que idiota de nascimento
que perdi o rumo do discurso que soava em mim e não pude reencontrar
que não choro quando sinto desejo de chorar
que me atraso em tudo
que sou arruinado por tanta marcha e contramarcha
que anseio a imobilidade perfeita e a pressa impecável
que não sou o que sou nem o que não sou
que apesar de tudo tenho um orgulho satânico ainda que em certas horas tenha sido humilde
até igualar-me às pedras
que vivi quinze anos no mesmo círculo
que me julguei predestinado para algo extraordinário e nada conquistei
que nunca usarei gravata
que não encontro meu corpo
que percebi por lampejos minha falsidade e não pude destruir-me, varrer tudo e criar
da minha indolência, da minha
flutuação,  do meu extravio um ar novo, e obstinadamente 
meu suicídio ao alcance da mão
me levantarei do chão mais ridículo ainda para seguir zombando dos outros e de mim até o dia
do juízo final.


Da obra Falsas manioblas, 1966.

* FALN: Fuerzas Armadas de Liberación Nacional puertorriqueña.


Derrota

Yo que no he tenido nunca un oficio 
que ante todo competidor me he sentido débil 
que perdí los mejores títulos para la vida 
que apenas llego a un sitio ya quiero irme (creyendo que mudarme es una solución) 
que he sido negado anticipadamente y escarnecido por los más aptos 
que me arrimo a las paredes para no caer del todo 
que soy objeto de risa para mí mismo que creí 
que mi padre era eterno 
que he sido humillado por profesores de literatura 
que un día pregunté en qué podía ayudar y la respuesta fue una risotada 
que no podré nunca formar un hogar, ni ser brillante, ni triunfar en la vida 
que he sido abandonado por muchas personas porque casi no hablo 
que tengo vergüenza por actos que no he cometido 
que poco me ha faltado para echar a correr por la calle 
que he perdido un centro que nunca tuve 
que me he vuelto el hazmerreír de mucha gente por vivir en el limbo 
que no encontraré nunca quién me soporte 
que fui preterido en aras de personas más miserables que yo 
que seguiré toda la vida así y que el año entrante seré muchas veces más burlado en mi ridícula ambición 
que estoy cansado de recibir consejos de otros más aletargados que yo («Ud. es muy quedado, avíspese, despierte») 
que nunca podré viajar a la India 
que he recibido favores sin dar nada en cambio 
que ando por la ciudad de un lado a otro como una pluma 
que me dejo llevar por los otros 
que no tengo personalidad ni quiero tenerla 
que todo el día tapo mi rebelión 
que no me he ido a las guerrillas 
que no he hecho nada por mi pueblo 
que no soy de las FALN y me desespero por todas estas cosas y por otras cuya enumeración sería interminable 
que no puedo salir de mi prisión 
que he sido dado de baja en todas partes por inútil 
que en realidad no he podido casarme ni ir a París ni tener un día sereno 
que me niego a reconocer los hechos 
que siempre babeo sobre mi historia 
que soy imbécil y más que imbécil de nacimiento 
que perdí el hilo del discurso que se ejecutaba en mí y no he podido encontrarlo 
que no lloro cuando siento deseos de hacerlo 
que llego tarde a todo 
que he sido arruinado por tantas marchas y contramarchas 
que ansío la inmovilidad perfecta y la prisa impecable 
que no soy lo que soy ni lo que no soy 
que a pesar de todo tengo un orgullo satánico aunque a ciertas horas haya sido humilde hasta igualarme a las piedras 
que he vivido quince años en el mismo círculo 
que me creí predestinado para algo fuera de lo común y nada he logrado 
que nunca usaré corbata 
que no encuentro mi cuerpo 
que he percibido por relámpagos mi falsedad y no he podido derribarme, barrer todo y crear de mi indolencia, mi 
flotación, mi extravío una frescura nueva, y obstinadamente me suicido al alcance de la mano 
me levantaré del suelo más ridículo todavía para seguir burlándome de los otros y de mí hasta el día del juicio final.



Candelabros acesos 
dentro dos olhos caninos

Prometem o provável alívio
para o mais antigo crime
inscrito no espírito

Alimentar a dúvida
inocente ato de resistência
carrega entre os dentes
a doce carne do dia
em que não pensamos
o apocalipse
Um poeta interpela outro:

- O que te angustia 
à hora noturna
que antecede o sono?

- A nova escova de dentes
que lacera-me as gengivas.

- Ao menos lembrarás
os filetes de sangue do poema
de Ana Cristina César.

- Mas há tais signos no parnaso?

- Sim, e também sêmen, suor, saliva,
urina e todos os fluidos vitais imagináveis!

- Podemos com imagens 
dissolver símbolos sólidos?

- Lógico, por exemplo, quando 
o líquido esqueleto dos afogados
inquieta a maré baixa dos olhos
e deixa ler os versos submersos.






Não necessitara 
ouvir os sábios anciãos
narrarem a fábula do homem 
que colheu uma corola
sonhando carregá-la consigo
sob sol e chuva
sem perder o viço
até a derradeira hora do dia

Mas ao crepúsculo
estavam murchas as pétalas
somente a memória
mantinha-se viva

Coração não te quero intacto
Vislumbro-te dilacerado
entre vigorosos caninos
Tingindo de rubro
a túnica das musas

Coração te quero página
para o pouso aceso
dos pássaros que dissipam
o sono das pálpebras

Coração te quero página
para os pesadelos que equilibram-se
na ponta dos cílios
contemplando o olhar vazio
do abismo


A sabedoria do espírito
aconselha-te o momento exato
em que o silêncio torna-se fértil
e as vísceras da terra
despertarão a semente.

Todo o ciclo passa por teus dedos,
da semeadura à colheita.

Estrelas eclodem na treva.

Estranhos homens leem como lenitivo
símbolo dissipador da dúvida,
língua alheia ao naufrágio.

Mas Deus permanece ilegível
O idioma submarino de Maldoror 
não maldiria a árvore sem sombra ou fruto
o grão estéril no desespero dos olhos.
Na palidez das princesas
podes escrever
odes ao regicídio

Dorso estendido
silencioso pergaminho
pronto para os versos
que incitem a súbita
chuva de guilhotinas
Ilustração de René Magritte para Les Chants de Maldoror.


É plausível que desde menino
a paz do bom pasto
não lhe seduzisse
Compreende tal ideia
aquele que não lê a vida 
feito página bíblica
e aceita o avesso,
influxo percurso
a ser percorrido

Fecundo chão do desejo
ampara os passos
que calçam sapatos acesos

Encontramos refúgio
ao contemplar o sangue
compor vivas corolas

Conto sobre Les Chants de Maldoror
Como a sintaxe do dia 
desritma-se quando a carne 
agasalha uma navalha
Ou os pesadelos pousam 
na ponta dos teus dedos

Um homem move-se pelas margens
pássaros na órbita dos barcos
os pensamentos voam ao redor do crânio
Semelhante a um anjo da guarda
o estranho escriba acompanha-o
registrando insólitos solilóquios