moeda no bolso
                                       pagarei com caracol
                                    o jornal de hoje
                      até que pouse em minhas pupilas
                      a morte da estrela é vida
                      quando negras pálpebras anunciarem o sono
                      o espaço me parecerá intacto:
                      apenas uma janela que se apaga
                      na constelação da cidade acesa.

                      mas tua morte não tocará meu crânio
                      com tamanha delicadeza.
Acesa como girassol de van gogh, no princípio. Incidindo sobre mesa e livros. Pétalas em chamas e aroma luminoso. São tantas formas de atear cores quentes à sobriedade do quarto: cortar os pulsos, acender um cigarro, pintar os lábios, descascar uma laranja, adotar um gato amarelo de olhos cintilantes. A mais simples: reatar o ciclo e substituir as flores do vaso. Se cultivasse diários, lembraria o momento exato em que julguei cruel tal rotina. O passado recente ainda recende seu sangue. 
Jazz nos corredores do supermercado. Dedos frenéticos tamborilando meu crânio. Penso ao ritmo do piano. Labirinto de intestinos, a publicidade torna qualquer bosta indispensável. Meus ossos são tão brancos quanto o sorriso do creme dental. A criança vê com ternura o olhar asfixiado do peixe. Belos ganchos transpassam pedaços escarlates de carne. Tomates coagulados entre legumes fálicos. Cigarrinhos de chocolate ofendem a moral de hoje. Macarrão instântaneo, lata de atum ou salsicha, refeição dos solitários. O jazz silenciou, Carlo Marx ainda uiva, meu crânio não cala.
céu tempestuoso
       folhas cantam em uníssono
tua canção gris
dedos delicados
        passinhos de louva deus
tateando o seio
branco voo de anjo
  graseja a garça sobre
meu quintal sem asas
o leito do vento
   a espiral de urubus
contorna a nanquim
urubus pousados
ângulos retos do prédio
gárgulas com tédio
                         I

NÃO MOVO UM MÚSCULO
SÓ OUTRA PEDRA NA PRAIA
POUSA-ME O CREPÚSCULO



                      II

SÚBITO ILUMINO-ME
SÃO MOLUSCOS OS SAPATOS
CALÇO-OS E PARTO


I
no ventre de yukio
a lâmina inscreve:
rio.

língua ritual
flui
sintaxe escarlate.

II
lâmina não cotidiana
língua inutensílio
El arco y la lira

seppuku & poesia
sublimando os usos




JACK KEROUAC: Fundamentos da Prosa Espontânea.



ESQUEMA: O objeto é situado diante da mente ou na realidade, como se fosse um desenho (uma paisagem, uma xícara de chá ou um rosto ancião), ou é situada na memória onde se converte em um desenho a partir da recordação de uma imagem-objeto definida.

 PROCEDIMENTO: Como temporalidade de uma essência na pureza da palavra, a linguagem desenhada consiste em um imperturbável fluxo de ideias-palavras pessoais e secretas a partir da mente (como frases de um músico de jazz) sobre o sujeito da imagem.

 MÉTODO: Nenhum ponto e aparte separam as frases-estruturas já quebradas arbitrariamente por dois pontos falsos e tímidas vírgulas usualmente desnecessárias - salvo vigorosos hífens espaciais que separam o fôlego retórico (assim como o músico de jazz respira entre as frases que sopra) - "pausas métricas que são o essencial da nossa palavra" - "divisões dos sons que escutamos" - "o tempo como anotá-lo" (William Carlos Williams).

ALCANCE: Nenhuma seletividade da expressão somente acompanhar o livre desvio (associação) da mente até mares de pensamentos ilimitadamente soprados-sobre-os-assuntos, nadando no mar do próprio idioma sem outra disciplina salvo os ritmos da exalação retórica e o testemunho debatido, BANG! (o hífen espacial) - sopre tão fundo quanto quiser - escreva com toda a profundidade, pesque tão longe como te ocorrer, que tua satisfação vá primeiro, logo o leitor não poderá deixar de receber o choque telepático e a excitação-significado por meio das mesmas leis que funcionam em sua própria mente humana.

 INTERVALO DO PENSAMENTO: Nenhuma pausa para pensar a palavra apropriada salvo a acumulação infantil de palavras escatológicas básicas até obter satisfação, a qual desembocará em um grandioso ritmo anexado ao pensamento e em concordância com a Grande Lei do momento oportuno.

 MOMENTO OPORTUNO: Nada pode obstruir se flui no tempo e as leis do tempo shakespeareano que enfatiza a dramática necessidade de expressar-se agora mesmo com a própria maneira inalterável ou a língua sustentada para sempre - sem revisões (salvo erros racionais, tais como nomes ou inserções calculadas como atos de não escritura, somente inserção).

CENTRO DE INTERESSE: Não comece com uma ideia pré-concebida sobre o que dizer da imagem somente como uma joia central de interesse no sujeito da imagem no instante de escrever e escreva para adiante nadando no mar da linguagem para uma liberação periférica e o esgotamento - nada de segundos pensamentos salvo por razões poéticas ou pós-datas - Nunca volte a pensar para "melhorar" ou sustentar impressões pois os melhores escritos são sempre os mais dolorosos e pessoais arrancados pela força e lançados a partir do berço protetor da mente manancial de ti mesmo, Sopra! Agora! - Tua maneira é a única maneira - "boa" ou "má" - sempre honesta ("ridícula"), espontânea, "confessional" interessante, porque não foi "elaborada". O ofício é o ofício.

ESTRUTURA DE TRABALHO: As modernas estruturas bizarras (ciência-ficção, etc.) emanam da linguagem que morreu, temas "diferentes" dão a ilusão de uma vida "nova". Segue asperamente linhas em expansão, o momento mais que o tema, como a pedra em um rio, para que a mente flua sobre a joia do centro da necessidade (que tua mente gire, de imediato) até alcançar um ponto onde o que era um "começo" muito vago se converta em uma necessidade aguda de "consumação" e a linguagem se aproxime em uma corrida com os leitos do tempo - a corrida do trabalho, seguindo as leis da Forma Profunda, até a conclusão, as palavras finais, a última gota - a Noite é O final.

ESTADO MENTAL: Se for possível escreva "sem consciência" um semi-transe (como na anterior "escritura-transe" de Yeats) permitindo que o subconsciente com sua própria linguagem desinibida interessante necessária e portanto "moderna" admita o que a arte consciente censuraría, e escreva excitada e velozmente, sem cãimbras na escrita manual e datilografada, conforme (como do centro à margem) as leis do orgasmo, o "anulamento da consciência" segundo Wilhelm Reich. Vem de dentro, emerge relaxado e dito.



Traduzido a partir de Beat days/Días beats: visiones para jóvenes incorregibles, 2003, Miguel Grinberg.






A imagem foi construída ao acaso, nada mais que um velho calendário esquecido em uma porta não utilizada, e a tramela amordaça o cristo católico-ocidental. Certamente não por acaso meus olhos perceberam seu poder transgressor. Magnífico!